Como conceituar, diagnosticar e tratar a intolerância à lactose |
How to define, diagnose and treat lactose intolerance |
Rosana Tumas |
Mestre em Medicina pelo Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Médica assistente da Unidade de Nutrologia do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. |
Ary Lopes Cardoso |
Doutor em Medicina pelo Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Responsável pela Unidade de Nutrologia do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. |
Correspondência: Rosana Tumas – Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 647 – Cerqueira César. São Paulo – SP. CEP 05403-000 – E-mail: rosanat@icr.hcnet.usp.br |
Unitermos: intolerância, lactulose, nutrição. |
Unterms: intolerance, lactulose, nutrition. |
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Sumário Introdução: A nutrição adequada é fator indispensável para a promoção do crescimento e desenvolvimento no primeiro ano de vida. A substituição do leite materno pelo leite de vaca, quando necessária deve ser feita com cautela. Além de não suprir as necessidades do lactente, o leite de vaca pode desencadear o aparecimento de situações clínicas que exijam a suspensão parcial ou mesmo total desse alimento. Dentre essas situações, a intolerância à lactose é uma das mais comuns. Definição: Intolerância à lactose é uma síndrome clínica que se manifesta por sintomas gastrointestinais desencadeados após a sua ingestão. Fisiopatologia e manifestações clínicas: A deficiência da lactase reduz a capacidade de digestão e absorção da lactose, desencadeando cólicas, flatulência, distensão abdominal e diarréia, decorrentes do seu efeito osmótico no cólon. Classificação: Deficiência ontogenética de lactase (hipolactasia primária do adulto), deficiência secundária de lactase (decorrente de lesão da mucosa do intestino delgado), deficiência neonatal de lactase (comum em prematuros com menos de 34 semanas de gestação), deficiência congênita de lactase (doença genética muito rara). Diagnóstico: Basicamente clínico, comprovado por teste terapêutico, análise do pH fecal e substâncias redutoras nas fezes, teste de tolerância à lactose, teste do hidrogênio expirado e biópsia intestinal (pesquisa de atividade enzimática), genotipagem. Tratamento: Dieta com restrição parcial ou total da ingestão de lactose, indicada com diagnóstico comprovado; uso de substituto adequado para o leite de vaca, com suplementação de vitaminas e minerais. A reposição enzimática muitas vezes é utilizada como alternativa para o tratamento de pacientes com intolerância parcial da lactose. |
Sumary Introduction: Adequate nutrition is an indispensable factor for promoting growth and development in the first year of life. The replacement of human milk by cow milk, whenever needed, should be done carefully. Besides not supplying infant’s complete requirements, cow milk can trigger the advent of clinical situations demanding the partial or even total suspension of this food. Amongst these situations, lactose intolerance is one of the most common. Definition: Lactose intolerance is a clinical syndrome manifested by gastrointestinal symptoms triggered after its ingestion. Physiopathology and clinical manifestations: Lactase deficiency reduces the capacity of lactose’s digestion and absorption, leading to cramps, abdominal distension, flatulence and diarrhea, as a consequence of its osmotic effect on the colon. Classification: Lactase ontogenetic deficiency (adult primary hypolactasia), lactase secondary deficiency (consequent to small bowel mucosa injury), neonatal lactase deficiency (premature infants, born with less than 34 weeks of gestational age), congenital lactase deficiency (very rare genetic condition). Diagnosis: Essentially clinical, can be confirmed by therapeutic test, analysis of fecal pH and fecal reducing substances, lactose tolerance test, test of exhaled hydrogen, intestinal biopsy (enzymatic activity research), and genotype characterization. Treatment: Diet with partial or total restriction of lactose ingestion, indicated after confirmed diagnosis; use of an appropriate substitute for cow milk, with vitamin and mineral supplementation. Enzymatic replacement can be used as an alternative treatment for patients with partial intolerance. |
Numeração de páginas na revista impressa: 13 à 20 Resumo Introdução: A nutrição adequada é fator indispensável para a promoção do crescimento e desenvolvimento no primeiro ano de vida. A substituição do leite materno pelo leite de vaca, quando necessária deve ser feita com cautela. Além de não suprir as necessidades do lactente, o leite de vaca pode desencadear o aparecimento de situações clínicas que exijam a suspensão parcial ou mesmo total desse alimento. Dentre essas situações, a intolerância à lactose é uma das mais comuns. Definição: Intolerância à lactose é uma síndrome clínica que se manifesta por sintomas gastrointestinais desencadeados após a sua ingestão. Fisiopatologia e manifestações clínicas: A deficiência da lactase reduz a capacidade de digestão e absorção da lactose, desencadeando cólicas, flatulência, distensão abdominal e diarréia, decorrentes do seu efeito osmótico no cólon. Classificação: Deficiência ontogenética de lactase (hipolactasia primária do adulto), deficiência secundária de lactase (decorrente de lesão da mucosa do intestino delgado), deficiência neonatal de lactase (comum em prematuros com menos de 34 semanas de gestação), deficiência congênita de lactase (doença genética muito rara). Diagnóstico: Basicamente clínico, comprovado por teste terapêutico, análise do pH fecal e substâncias redutoras nas fezes, teste de tolerância à lactose, teste do hidrogênio expirado e biópsia intestinal (pesquisa de atividade enzimática), genotipagem. Tratamento: Dieta com restrição parcial ou total da ingestão de lactose, indicada com diagnóstico comprovado; uso de substituto adequado para o leite de vaca, com suplementação de vitaminas e minerais. A reposição enzimática muitas vezes é utilizada como alternativa para o tratamento de pacientes com intolerância parcial da lactose. Introdução A chave para se obter um crescimento e desenvolvimento adequados, especialmente no primeiro ano de vida, baseia-se na combinação de diferentes fatores. A nutrição, entretanto, é a chave-mestra deste processo. A observação do ganho pôndero-estatural é de fundamental importância, pois várias patologias podem iniciar sua manifestação clínica apenas com o achado de uma velocidade de ganho de peso e estatura abaixo do esperado para a idade do paciente. A oferta de uma alimentação adequada para crianças pequenas deve privilegiar tanto os macros como os micronutrientes. O leite materno contempla todas as necessidades do lactente e, na impossibilidade de tê-lo como fonte alimentar principal, toda substituição deve ser cautelosa. O fato de o leite ser um alimento muito importante nos primeiros anos de vida faz com que toda situação clínica que indique suspensão ou restrição de sua ingestão deva ser seguida de perto, idealmente por pediatra e nutricionista. São várias as patologias que podem demandar a substituição do leite de vaca na alimentação infantil. As situações mais comuns na prática clínica são casos de intolerância e alergia, entidades clínicas distintas, mas que costumam ser confundidas, pois freqüentemente os termos “intolerância” e “alergia” são utilizados como sinônimos. Assim, torna-se fundamental o estabelecimento da diferença entre estas duas situações, já que elas podem implicar desde apenas um mal-estar até um choque anafilático. Intolerância alimentar corresponde a um termo genérico que se refere às variadas manifestações clínicas decorrentes de reações adversas desencadeadas por alimentos. Atualmente, tem-se optado por substituir este termo pela denominação “reações adversas aos alimentos”, a fim de diminuir as confusões a respeito das definições de cada situação. As muitas causas destas reações adversas podem envolver mecanismos distintos, o que proporciona o aparecimento de ampla gama de sintomas clínicos. As reações adversas à ingestão de alimentos podem ser divididas em dois tipos: 1. Reações adversas tóxicas, que ocorrem quando da ingestão de alimentos contaminados com substâncias tóxicas e independem da sensibilidade individual; 2. Reações adversas não tóxicas, que dependem da sensibilidade característica de cada indivíduo, tornando-o temporária ou definitivamente suscetível a desenvolver certas manifestações clínicas quando ingerir determinado alimento1. As reações adversas não tóxicas englobam situações que compreendem tanto reações de intolerância quanto alergia alimentar. A alergia alimentar se caracteriza por uma reação imunológica, geralmente desencadeada por uma proteína presente no alimento. No caso do leite de vaca a proteína mais freqüentemente envolvida é a 8 lacto-globulina, seguida da caseína2. A intolerância alimentar corresponde às alterações que podem ocorrer nos processos metabólicos de digestão e absorção de determinado componente do alimento, geralmente devido a alguma deficiência enzimática, sem haver envolvimento da resposta imunológica neste processo. No caso do leite de vaca, a enzima em questão é a lactase. Nos casos de alergia alimentar a exclusão total do alimento desencadeante é indicada. Nos casos de intolerância alimentar se indica a exclusão total ou parcial do alimento desencadeante, dependendo de cada caso. Atualmente se tem observado uma tendência em substituir o leite de vaca na alimentação infantil, sem haver necessariamente uma comprovação diagnóstica que justifique tal conduta. Dependendo do produto utilizado para substituir o leite, deve ser ponderada a suplementação de cálcio, já que o leite constitui a principal fonte deste micronutriente para esta faixa etária3. Dessa forma, faz-se necessário destacar a importância de se fornecer um aporte adequado de micronutrientes através de suplementação de vitaminas e minerais, sempre que o substituto do leite materno e/ou da fórmula infantil não seja especificamente formulado para atingir as necessidades preconizadas para os lactentes. O mesmo deve ser observado nas crianças maiores, quando o inquérito alimentar apontar ingestão inadequada de micronutrientes. Os pediatras, particularmente, devem estar atentos a respeito das controvérsias e dos benefícios relacionados ao consumo de produtos derivados do leite, bem como das fórmulas infantis à base de leite de vaca. A dieta dos lactentes e de crianças pequenas é baseada na ingestão de leite, e a restrição de seu consumo pode acarretar efeitos negativos no crescimento, uma vez que o leite é uma importante fonte alimentar protéica. Além disso, outros efeitos negativos podem ocorrer especialmente com relação à ingestão de cálcio e vitamina D para lactentes, crianças e adolescentes4. Definição A intolerância à lactose é uma síndrome clínica composta por um ou mais dos seguintes sintomas: dor abdominal, diarréia, náusea, flatulência e/ou distensão abdominal após a ingestão de lactose ou de produtos alimentícios contendo lactose. A quantidade de lactose necessária para desencadear os sintomas varia de indivíduo para indivíduo, dependendo da porção de lactose ingerida, do grau de deficiência de lactase e do tipo de alimento com o qual a lactose foi ingerida4. É causada pela deficiência ou ausência da lactase, enzima produzida pelas células da mucosa do intestino delgado. A lactase é a enzima responsável por hidrolisar a lactose em moléculas de monossacarídeos glicose e galactose, que são então absorvidas para a corrente sangüínea. Nem todas as pessoas que têm deficiência de lactase apresentam sintomas clínicos, porém as que apresentam são chamadas de intolerantes à lactose5,6. Má absorção de lactose é a conseqüência da deficiência de lactase ou incapacidade do paciente de digerir apropriadamente a lactose, o principal açúcar do leite4. É detectada laboratorialmente, porém não necessariamente acompanhada de manifestações clínicas de intolerância à lactose1. Fisiopatologia e manifestações clínicas A lactose é um dissacarídeo composto por uma molécula de galactose ligada a uma molécula de glicose. Ocorre naturalmente e exclusivamente no leite dos mamíferos. Sua absorção ocorre na borda em escova da mucosa do intestino delgado, através da ação da enzima lactase, que tem a função de hidrolisar a ligação entre as moléculas de glicose e galactose, uma vez que o ser humano não é capaz de absorver carboidratos que não se apresentem na forma de monossacarídeos. Esta enzima fica localizada na extremidade das vilosidades da mucosa intestinal, fato que tem importância clínica, quando se considera o efeito da doença diarréica na habilidade individual de tolerar o leite da dieta4. As reações adversas não tóxicas ao leite podem ser conseqüentes ao seu conteúdo de lactose ou ao seu conteúdo protéico. Estas duas situações são completamente diferentes, pois na alergia desencadeada pela proteína do leite de vaca há envolvimento de resposta imunológica, causando lesões variáveis no trato gastrointestinal, sendo geralmente limitada aos primeiros anos de vida. Suas manifestações clínicas relacionadas ao trato digestivo são muito semelhantes às da intolerância à lactose, o que pode facilmente confundir o diagnóstico. A alergia à proteína do leite de vaca, porém, pode apresentar-se também com lesões cutâneas (eczema atópico) e também com sintomas respiratórios, o que não ocorre na intolerância à lactose. A intolerância à lactose, por sua vez, é puramente um problema de digestão e absorção, não havendo nenhum mecanismo imunológico envolvido na sua fisiopatologia, e é muito mais freqüente acometer adultos que crianças. Sua evolução pode ser transitória ou definitiva1. O resumo das características que distinguem estes dois quadros está descrito na Tabela 1. Em indivíduos suscetíveis a ingestão de lactose pode causar sintomas variados, como diarréia, distensão abdominal, cólicas, náuseas e flatulência, que podem aparecer minutos ou horas após a ingestão do leite. Estes sintomas podem apresentar intensidades variáveis, dependendo da quantidade de lactose ingerida e do grau de deficiência de lactase, que varia individualmente5. Os carboidratos que não podem ser hidrolisados na luz intestinal a monossacarídeos para serem absorvidos, como normalmente é o caso dos oligossacarídeos do leite materno, das fibras alimentares e dos frutoligossacarídeos, atingem o cólon na qual sofrem fermentação através da ação da flora bacteriana e produzirão efeitos desejáveis, como a proteção da mucosa local e a melhora do ritmo intestinal. Quando a enzima lactase não é suficiente para hidrolisar as moléculas de lactose que chegam à luz do intestino delgado, esta não será absorvida e alcançará o cólon, no qual o seu efeito osmótico direcionará a água para a luz intestinal, diminuindo a consistência das fezes, aumentando o peristaltismo e acelerando o trânsito intestinal4, levando ao aparecimento de náusea, cólica e diarréia5. A lactose presente no cólon também sofre fermentação pela flora bacteriana, aumentando a produção de gases e causando distensão abdominal, cólica e flatulência4.
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Bibliografia |
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