Doença de Peyronie: novos conceitos |
Mauro Barbosa, Valdemar Ortiz |
Disciplina de Urologia da EPM-UNIFESP. |
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Numeração de páginas na revista impressa: 105 à 108 A doença de Peyronie (DP) é caracterizada pelo surgimento de uma placa fibrosa na túnica albugínea peniana que pode causar curvatura peniana durante a ereção. A ereção costuma ser dolorosa e, às vezes, é acompanhada de disfunção erétil (DE). Sua prevalência é estimada em torno de 9%. Envelhecimento, hipertensão e diabetes estão associados à DP e à DE, embora não existam correlações entre a severidade da curvatura peniana e essas comorbidades. A doença de Dupuytren, caracterizada por nódulos fibróticos na fascia palmar, é diagnosticada em 15% a 20% dos pacientes com DP. É possível que na DP ocorra fibrose no músculo liso dos corpos cavernosos e na artéria peniana média, o que levaria à disfunção venoclusiva ou à insuficiência arterial, provocando DE. O tratamento da DP é essencialmente cirúrgico, pela remoção da placa fibrosa ou plicatura da túnica, já que a maioria dos tratamentos clínicos não corrige a curvatura nem minimiza a placa. Tratamentos medicamentosos podem melhorar a dor e são mais eficazes nas fases iniciais da doença. O surgimento de novos conceitos nos últimos anos pode estimular pesquisas, o que levaria em última instância à melhoria do manejo da DP. Esses avanços são produto do desenvolvimento do primeiro modelo animal da DP e da utilização do que é conhecido sobre a patologia molecular de outras condições fibróticas para a DP, enfatizando o papel dos miofibroblastos e células-tronco na progressão da DP. Teoria do trauma local Em 1997, Devine formulou a hipótese de que a DP se desenvolve em conseqüência de um trauma no pênis durante a ereção. O princípio desta teoria se baseia em conhecimentos sobre o estágio inicial da cicatrização, no qual a hemorragia e a coagulação levam à deposição de fibrina, que é então estabilizada pelo complexo transglutaminase/fibronectina. Esse complexo atrai, por quimiotaxia, macrófagos e fibroblastos e estimula a liberação de citocinas, principalmente o fator transformador do crescimento beta (TGF-b). Logo após a fase inflamatória, esses fatores estimulam a deposição de colágeno, matriz extracelular e o arranjo das fibras de elastina e colágeno. Durante a cicatrização normal, a velocidade desses processos cessa, uma vez que o tecido lesado é reparado, o que envolve uma série de mecanismos, levando à inibição da proliferação de fibroblastos, à diferenciação em miofibroblastos, à redução do número de miofibroblastos por apoptose, à inibição da síntese de colágeno, quebra de fibrina pelo sistema fibrinolítico e remodelação do colágeno pela metaloproteinase da matriz (MMP). A perturbação desses processos leva à formação de cicatriz, que resulta do acúmulo de miofibroblastos e da persistência da fibrina, devido à inibição da fibrinólise pelo acúmulo inibidor do ativador de plasminogênio (PAI-1) e da diminuição da atividade das MMP PAI-1 mediadas, resultando na inibição da quebra do colágeno. A idéia de que placas na DP resultam de lesões que não cicatrizam devidamente é defendida pela detecção histoquímica de fibrina em placas de tecido humano e de ratos, e não em túnica albugínea não traumatizada, e por níveis aumentados de PAI-1 mRNA. A injeção de fibrina na túnica albugínea de ratos induz à formação de lesões PD-símile em três semanas, acompanhada do aumento da expressão de TGF-b e marcadores de fibrose e estresse oxidativo. A relevância desse modelo de DP tem base no fato de que placas DP-símile se desenvolvem em resposta à injeção de sangue autólogo na túnica albugínea de ratos. Juntos esses dados provêm evidência experimental, suportando a hipótese de que otrauma da túnica albugínea causa DP e demonstra o papel pró-fibrótico da fibrina. Em contraste, um estudo recente mostrou que casos de fratura peniana não estão associados ao subseqüente desenvolvimento de PD. Dos 50 casos de DP reportados no estudo, nenhum tinha histórico de fratura peniana. Num estudo retrospectivo de dez anos o trauma peniano foi reportado em apenas 13,2% dos casos de DP. Essa evidência é, em primeira instância, difícil de conciliar com o papel etiológico proposto do trauma peniano na DP. Entretanto, o significado dessas observações não correlacionadas pode ser reduzido, considerando-se que essa população étnica específica pode ter uma baixa predisposição genética à DP, e é plausível propor que microtraumas e traumas possuem um papel etiológico na DP somente quando fatores sistêmicos e a predisposição genética contribuem para a cicatrização patológica, resultando em inflamação crônica e fibrose. Desenvolvimento da DP pós-prostatectomia retropúbica radical, que ocorre em um número pequeno de pacientes, pode resultar mais freqüentemente na lesão dos nervos penianos do que diretamente da túnica albugínea. Os nervos danificados desencadeiam fatores que, pela modulação parácrina, facilitam o desenvolvimento de placas. Similaridades entre DP e outras condições fibróticas associadas ao trauma mecânico ou a doenças auto-imunes do tecido conjuntivo dão suporte a essa hipótese. Em um modelo desenvolvido pela injeção, na túnica albugínea de ratos, de um peptídeo com uma seqüência parcial de TGF-b 1 ou de toda a proteína TGF-b 1, lesões fibrosas se desenvolveram em seis semanas. A análise histológica revelou placas DP-símile. Após a administração de colchicina, droga usada no tratamento clínico da DP, é observada uma remissão dessas placas. Espécies reativas de oxigênio (ROS) desencadeiam processos pró-fibróticos como a peroxidação de lipídeos e a síntese de TGF-b 1. Na DP os níveis de xantina óxido-redutase e heme-oxigenase-1, dois marcadores-chave do estresse oxidativo, aumentam paralelamente à síntese de colágeno, e é interessante notar que a proporção de colágeno III/I é predominantemente elevada ao ponto que uma forma imatura de colágeno associada à cicatrização patológica predomina. Níveis crescentes de ROS em placas da DP são acompanhados pela indução espontânea da forma induzida do óxido nítrico sintetase (iNOS), resultando na liberação contínua de óxido nítrico (NO), que reage com ROS para produzir peroxinitrito, o que reduz os níveis de ROS e, presumivelmente, inibe a fibrose. Essa hipótese é baseada no fato de que a inibição prolongada de iNOS por L-N6 (I-aminoetil) lisina aumenta a deposição de colágeno em placas DP-símile, e que o tratamento prolongado com L-arginina, o substrato iNOS, previne o desenvolvimento de placas no modelo TGF-b 1. Além disso, a terapia gênica com a construção de DNA complementar de iNOS injetado na túnica albugínea induziu a regressão de placa DP-símile no modelo de fibrina em ratos. Administração prolongada de sildenafil, um inibidor de fosfodiesterase tipo 5 (PDE5) que impede a quebra do GMP cíclico, previne a formação de placas fibrosas em ratos. O balanço entre mecanismos fibróticos e antifibróticos em placas na DP não é afetado somente por ROS e iNOS. Estudos revelaram diferentes expressões de múltiplos genes entre placas fibrosas e túnica albugínea normal. Culturas de células desses tecidos ajudaram a identificar grupos de genes com expressão aumentados na DP. Esses genes codificam proteínas pró-fibróticas e pró-inflamatórias e marcadores como as proteínas Rho, cortactina, integrina-b e colágeno a-2. Outros genes expressos codificam proteínas, como as beta-timosinas, MMPs e decorina, que parecem ser parte de um mecanismo de defesa antifibrótico e antiinflamatório. Esses padrões diferenciais de expressão gênica dão suporte ao conceito de que pelo menos algumas placas podem evoluir para remissão espontânea, o que eventualmente é observado. Progressão da placa na DP Os miofibroblastos são considerados uma das células-chave envolvidas no desenvolvimento de virtualmente todas as condições fibróticas. Durante a cicatrização, miofibroblastos secretam colágeno e participam da contração da lesão, diminuindo o seu tamanho, acelerando a cicatrização, sendo posteriormente eliminados por apoptose. A persistência patológica dessas células ou seu funcionamento prejudicado durante a fase inicial da cicatrização leva à formação de cicatriz. Apesar da suposição de que miofibroblastos têm um importante papel na DP, só recentemente algumas observações permitiram comprovar tal fato. Como a de que os fibroblastos estão presentes na túnica albugínea de humanos normais, mas existem em número consideravelmente maior em placas fibrosas, detectados pela expressão relativa da vimentina, um marcador de fibroblastos e da actina alfa de músculo liso, um marcador de miofibroblastos. Essa expressão diferencial é mimetizada nos modelos animais de indução de DP (TGF-b 1 e fibrina) em que culturas de fibroblastos derivadas de túnica albugínea humana normal e com DP se diferenciam em miofibroblastos, sintetizam colágeno e sofrem apoptose. Os perfis de expressão gênica refletem os processos que contribuem para o desenvolvimento in vivo de DP em humanos e modelos animais. Células-tronco Cultura de fibroblastos derivados de placas fibrosas de humanos indicam que a diferenciação de fibroblastos em miofibroblastos tem um importante papel na patogênese da DP. Estudos recentes indicam a presença de células-tronco multipotentes, em placas fibrosas e tecido sadio, o pode ser relevante no tratamento da DP. Uma complicação bem definida da DP em casos avançados é a calcificação, que resulta na transformação da placa em um tecido ósseo-símile, processo esse que pode não estar necessariamente associado à progressão da doença e ser detectado em estágios iniciais. Estudos com ultra-som e raios X revelaram que é relativamente comum, tendo sido demonstrado por estudo microscópico e investigação radiográfica, que 27% das placas palpáveis têm calcificações, que em muitos casos se estendem aos corpos cavernosos. Fibroblastos humanos de túnica albugínea sadia e placas se diferenciam in vitro para formar células osteoblásticas-símile que estimulam osteogênese, processo detectado por imunoistoquímica, Western Blot e PCR, usando marcadores como a fosfatase alcalina, proteína óssea morfogenética 2 e osteopontina, acompanhado pela diminuição da expressão de genes que codificam as proteínas morfogenéticas ósseas e o TGF-b. A diferenciação de fibroblastos em osteoblastos foi estimulada pelo TGF-b 1, o que implica que esta citocina desencadeia osteogênese e pode estar envolvida na calcificação in vivo em placas fibrosas. A formação de células osteoblasticas-símile in vitro ocorre na mesma freqüência em fibroblastos derivados de túnica sadia e de placas. Essa evidência indica que tecido normal é propenso à fibrose e à calcificação, processos que não dependem da migração de células-tronco e miofibroblastos para o local de desenvolvimento de placas fibrosas. A presença de células multipotentes na túnica albugínea é indicada pela presença de células CD34+ em cultura de fibroblastos e pelo fato de que, assim como formam mioblastos ou osteoblastos, células na túnica albugínea e em cultura podem diferenciar-se em músculo liso e podem paracrinamente transformar outras células multipotentes. Células-tronco na túnica albugínea podem simultaneamente evoluir para diferentes linhagens, um conceito que explica por que a ossificação pode ocorrer em estágios iniciais do desenvolvimento de placas fibrosas. Quatro linhas de evidência dão suporte à surpreendente descoberta de que células de placas são potencialmente malignas, ao contrário de células da túnica sadia. Primeiro, que células da DP podem formar colônias em cultura, um teste de seleção para células-tronco e/ou células malignas. Segundo, essas anormalidades cromossômicas de células progridem durante a cultura, principalmente aneusomias dos cromossomos 7, 8, 17, 18 e X e deleções recorrentes do cromossomo Y. Terceiro, que a citometria de fluxo mostrou que a fase S de células da DP é prolongada e que o gene P53 é inativo, características que são consistentes com replicações incontroladas. Em quarto, que camundongos imunodeficientes injetados com células de DP desenvolveram tumores subcutâneos, evento não evidenciado quando da injeção de células normais da túnica albugínea. A identificação de fatores parácrinos na túnica albugínea peniana ou corpos cavernosos que mantêm essas células transformadas quiescentes, permitindo a osteogênese, mas não a progressão neoplástica, deve ser testada experimentalmente, pelos riscos potenciais de terapias médicas para DP que promovem instabilidade cromossômica. Conclusão Usando modelos animais da DP para testar drogas indicadas para outras condições fibróticas, principalmente agentes farmacológicos e biológicos que modulam alvos moleculares e celulares identificados nos estudos de laboratório discutidos anteriormente, é possível levar ao desenvolvimento de novas e efetivas terapias para a DP. |
Bibliografia |
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