A pesquisa na ciência oftalmológica – o que investigar? |
Edméa Rita Temporini |
Professora associada, livre-docente em Metodologia de Pesquisa em Saúde, Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo; assessora de Pesquisa junto às disciplinas de Oftalmologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas. |
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Numeração de páginas na revista impressa: 15 à 17 A pesquisa científica pode ser definida como atividade, ou conjunto de atividades, de busca do conhecimento da realidade, conduzida segundo método científico. É o instrumento gerador do conhecimento científico(1,2,3). A ciência se desenvolveu, em parte, em decorrência da necessidade de dispor-se de conhecimento e compreensão dos fenômenos e fatos, de forma segura e confiável. Esses requisitos em geral não são alcançados apenas mediante a observação eventual ou o senso comum(1). A denominação “pesquisa científica” pressupõe a adoção de método próprio e técnicas específicas, aplicados de forma sistematizada, com vistas a obtenção de conhecimento que se refira à realidade empírica. Entenda-se “realidade empírica” como tudo o que existe e pode ser conhecido por meio da experiência. A palavra “empírica” procede do grego-empeiria” – que significa experiência(3). Nesse sentido, a expressão “conhecimento empírico” se refere também ao conhecimento da realidade obtido a partir do estudo sistematizado dos fatos, necessário e imprescindível à elaboração da ciência. A pesquisa científica se distingue em razão do método, das técnicas, de seu enfoque na realidade empírica e da forma pela qual comunica os conhecimentos obtidos(3). Grupo restrito de indivíduos de cada profissão se dedica à investigação científica. Renunciando, muitas vezes, às vantagens econômicas do exercício profissional, dedicam-se à busca de novos conhecimentos de caráter original. Cabe à Universidade preparar o pesquisador que se dedicará ao desenvolvimento de pesquisas, de forma exclusiva ou concomitantemente a outras atividades profissionais(4). Essa tarefa de preparação permitiria ao pesquisador assumir a função de “transformar o conhecimento e as decisões em ação”, visando novas perspectivas de melhoria de vida para a sociedade(4,5). A obtenção do conhecimento científico se revela essencial para o progresso da ciência e da prática em oftalmologia. Necessário se faz compreender e controlar agentes responsáveis por afecções e distúrbios oculares que conduzem à incapacidade visual e à cegueira. Não menos importante é a busca do aumento da eficiência dos serviços oftalmológicos, utilizando conhecimentos técnicos e administrativos obtidos de modo sistemático e confiável. Ainda, cabe ressaltar a necessidade de compreender fatores sociais relacionados à ocorrência, à prevenção e ao tratamento de distúrbios do sistema visual. Nas últimas décadas, a pesquisa básica de laboratório tem permitido vencer dificuldades na compreensão de fatores responsáveis por distúrbios dos olhos e do sistema visual, bem como de seu controle. Avanços significativos também têm sido alcançados por meio da pesquisa clínica, na aplicação do conhecimento obtido para a prevenção, controle e tratamento dessas condições no ser humano. Esses avanços foram favorecidos, posteriormente, com a aplicação de metodologias epidemiológicas(6). Não obstante, em especial nos países em desenvolvimento, os achados da pesquisa básica e clínica não têm beneficiado muitos dos indivíduos necessitados da sua aplicação a problemas de saúde ocular. O número de pessoas cegas ou deficientes visuais poderia ter sido reduzido significativamente mediante o acesso aos serviços especializados(6). Admite-se a existência de barreiras que permeiam o meio sociocultural representadas por ausência de conhecimento, crenças distorcidas, atitudes desfavoráveis em relação à prevenção de problemas oftálmicos, determinando o grau de importância que o indivíduo atribui a sua visão e a respectiva conduta para preservá-la(7,8,9,10,11,12). O conhecimento dessa realidade compõe um campo da pesquisa em oftalmologia que revela crescente aumento de interesse em investigá-lo, uma vez reconhecida a sua importância. Depreende-se, assim, a ampla gama de enfoques de pesquisa, assim como de modalidades diversas para o estudo de temas de interesse da oftalmologia que tanto podem centrar-se na pesquisa básica como na pesquisa aplicada. A escolha do modelo da pesquisa dependerá da questão que o investigador deseja responder, dos recursos disponíveis e de suas tendências pessoais. Principais enfoques da pesquisa no campo da Oftalmologia Em termos didáticos se pode definir três enfoques principais da investigação em oftalmologia: técnico (ou tecnológico), administrativo e social(13,14,15). O estudo de variáveis técnicas e tecnológicas O enfoque técnico ou tecnológico diz respeito aos conhecimentos científicos em relação às afecções oculares, sua etiologia, diagnóstico, terapêutica, distribuição na população e fatores que determinam essa distribuição. A pesquisa clínica e a pesquisa epidemiológica fornecem os conhecimentos científicos que devem nortear a conduta médica, assim como os conhecimentos a respeito da prevalência, incidência e fatores de risco, referentes às doenças/agravos oculares e à cegueira. A pesquisa clínica de natureza experimental procura estabelecer relação de causa e efeito entre as variáveis estudadas. É realizada com seres humanos, respeitadas as normas éticas de experimentação, usualmente denominada de ensaio clínico (“clinical trial”). Em geral avalia benefícios ou agravos decorrentes de um tratamento ou procedimento(16). Quando a investigação experimental é realizada em laboratório, trata-se de pesquisa básica que se desenvolve por estudos “in vitro” ou estudos em animais que apresentariam o problema de maneira similar ao homem(6). Embora haja diferenças importantes entre experimentos de laboratório e experimentos de campo, sua concepção essencial é a mesma(1). Os estudos clínicos realizados no campo ou em laboratório, em geral, buscam conhecimentos a respeito de doenças oculares, métodos/técnicas de diagnóstico e tratamento. Essas constituem, portanto, variáveis introduzidas em pesquisas técnicas ou tecnológicas. Se a investigação científica focaliza variáveis tais como as que se referem à prevalência ou à incidência da cegueira e de distúrbios oculares, aos fatores de risco em determinada população (ou grupo populacional), trata-se de estudo epidemiológico, que também se insere no campo técnico. Os estudos epidemiológicos são realizados, em geral, na forma de “surveys” descritivos e analíticos, de natureza longitudinal (prospectiva ou retrospectiva) ou transversal. A palavra “survey” é de difícil tradução, por apresentar aplicação ampla e diversificada, além de abranger várias modalidades de pesquisa. Esse tipo de estudo se destina a descrever e/ou interpretar a realidade da forma como se apresenta, sem executar manipulação das variáveis observadas. Alguns se referem ao “survey” como estudo observacional, considerando essa propriedade(15). Determinados tipos de “survey” apresentam semelhanças com pesquisas experimentais, o que traz mais dificuldades na sua definição. Uma forma de distingui-los estaria na sua finalidade, pois o “survey” não apresenta o propósito de estabelecer relações de causa e efeito entre as variáveis pesquisadas. Pode, porém, identificar a influência exercida por uma variável em outras, por meio do cruzamento entre elas, que produz uma análise do fenômeno em estudo(2). O enfoque administrativo/operacional em pesquisa O enfoque administrativo da pesquisa em oftalmologia inclui aspectos relacionados à organização formal e informal dos serviços de saúde ocular. Esses estudos se centram na estrutura e funcionamento das clínicas com a intenção de obter informações e direcionar intervenções com vistas a aprimorar o atendimento oftalmológico. O conhecimento dessa realidade beneficia, em especial, os administradores do setor saúde, facilitando o exercício do poder decisório e a manutenção de condições favoráveis ao desempenho das tarefas funcionais(14). Aplica-se o termo pesquisa operacional a esse tipo de estudos. Pode ser definida como pesquisa que emprega o método científico para solucionar problemas na administração e controle de sistemas, utilizando equipe multidisciplinar e, por vezes, o envolvimento da comunidade(6). Na pesquisa operacional se prevê a utilização de tecnologia apropriada com o propósito de atingir o maior número de indivíduos afetados pelo problema ocular. Assim, considera o impacto a ser alcançado no controle do problema focalizado, em relação aos recursos disponíveis – tempo, pessoal, equipamento, assessoria, verba e outros(6,17). O estudo de variáveis sociais O enfoque social da pesquisa em oftalmologia se refere ao comportamento humano em relação à saúde ocular e seus fatores determinantes – conhecimentos, crenças, atitudes, valores, emoções, motivações, além de condições socioambientais e de vida(7,17). Observa-se, com bastante freqüência, a dificuldade dos indivíduos em adotarem conduta acertada, no que respeita à promoção da saúde ocular, à prevenção de agravos e à recuperação de afecções visuais(9,10,12). Influências restritivas, de ordem pessoal e sociocultural, interferem nas tomadas de decisão do indivíduo, visando à proteção da saúde ocular(8,15). As pesquisas referentes à influência de fatores humanos para a prevenção e tratamento de problemas oftálmicos apresentam, entre suas finalidades, a de compreender como os indivíduos constroem sua percepção de risco, considerando o conceito epidemiológico aplicado a mensagens de prevenção. Assim, a decisão de proteger-se depende da percepção individual a respeito do risco a que a pessoa julgaria estar exposta(7). Contudo, existem fortes conexões presentes nos grupos aos quais os indivíduos pertencem, a exercerem também influência na adoção de comportamento de risco/ou de proteção. Assim, os vínculos e a interação entre os indivíduos e o contexto sociocultural constroem e fortalecem as maneiras de agir, sentir e pensar. Desse modo, o comportamento interativo e os significados atribuídos às orientações preventivas são fortemente influenciados pelos grupos sociais de que faz parte o indivíduo(7). Uma das principais finalidades de pesquisas nesse campo consiste em identificar os fatores sociais que determinam a conduta individual e coletiva, responsável pelo fracasso ou êxito de ações preventivas de saúde ocular. Considera-se, portanto, que o conhecimento a respeito do que as pessoas e grupos da comunidade sabem, acreditam, desejam e fazem em relação à proteção e preservação do sistema visual, deve anteceder e direcionar o planejamento de ações que requeiram a participação dos indivíduos. Esse conhecimento pode ser obtido de maneira confiável mediante a realização de pesquisas científicas(14,18). A modalidade do “survey” em geral é a indicada para obter semelhante conhecimento. Conforme o que se pretende obter, aplica-se o “survey” descritivo, ou o analítico (explicativo), ou o exploratório. O tipo explicativo de “survey” requer apresentação também da descrição dos fatos estudados, anterior à análise. O estudo de fatores humanos é geralmente realizado por meio desse método de pesquisa, principalmente em razão da impraticabilidade de manipulação das variáveis. Não obstante, deve assegurar a obtenção de conhecimento científico, válido e confiável, a respeito da realidade estudada. Não basta, portanto, conhecer apenas a distribuição e fatores de risco de determinada afecção ocular em uma comunidade – obtida por meio de pesquisa epidemiológica, porém é necessário conhecer também as variáveis sociais interligadas à ocorrência da doença ou agravo. Essa apreensão mais completa da realidade permite o direcionamento efetivo de programas e atividades visando à preservação da saúde ocular. Várias são as modalidades da pesquisa científica aplicáveis aos diversos enfoques do campo de estudo. A escolha do tema e do modelo de pesquisa é fortemente influenciada pelas tendências pessoais do investigador, aliada ao próprio preparo em relação à metodologia científica. |
Bibliografia |
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