Revistas Fase R003 Id Materia 870






Tema do Mês
A Estratégia de Saúde da Família no Brasil
Heloiza Machado de Souza
Coordenadora dos Programas de Saúde da Família e de Agentes Comunitários de Saúde na Secretaria
de Assistência à Saúde do Ministério da Saúde.
Enfermeira sanitarista formada pela Universidade Federal de Santa Catarina, com especialização pela
Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz.



o grande avanço obtido na legislação sanitária brasileira com a formalização do sistema único de saúde, definido tanto na constituição de 1988 como nas leis complementares, precisa reverter-se em efetivas melhorias da qualidade de saúde do povo brasileiro. a grande dívida que se acumula ao longo do tempo precisa, urgentemente, ser resgatada.
cada vez mais fica evidente a necessidade de se implantar um novo modelo de atenção à saúde, fundamentado em uma nova ética setorial, que rompa com a atual lógica de prestação de serviços de saúde de forma discriminatória e excludente, um modelo mais voltado para o benefício de toda população, respondendo às suas reais necessidades, desde seus problemas mais simples até às suas questões mais complexas.

no processo de construção desse novo modelo assistencial, deve-se observar a plena sintonia com os princípios da universalidade e equidade da atenção e da integralidade das ações, colocando as práticas de saúde a serviço da defesa da vida de todos os cidadãos e desenvolvendo sua prática de forma competente, desde as medidas promocionais de saúde até suas ações mais especializadas.

faz-se necessário não mais a exposição das mazelas e dificuldades por que passam o povo brasileiro, no que tange à sua saúde, e os trabalhadores de saúde, em relação às suas condições de trabalho, associadas às contradições ao se comparar os avanços normativos e tecnológicos do setor e a realidade atual vivificada, questionada e rejeitada pelo mesmo povo.

o rompimento da prática atual não se fará apenas com a construção de novos estabelecimentos, mesmo que tecnologicamente avançados, tampouco com a redistribuição de uma demanda reprimida para outros serviços de um sistema com a mesma lógica de assistência.

haverá, porém, alguma chance de um novo modelo, ou melhor dizendo, de se colocar em prática o que já existe oficialmente posto e solicitado pela população, quando se partir para as verdadeiras e consequentes transformações, que passa pela busca do real universo da responsabilidade setorial, vislumbrando a saúde em seu significado mais amplo e integral.

para tanto, faz-se necessário romper com o modelo de atenção atual que, mesmo de roupa nova, vem oferecendo modelos de atenção antigos, ou seja, as organizações clássicas, que vêm desenvolvendo suas ações exclusivamente dentro de seu espaço físico e considerando o indivíduo apenas em seu aspecto biológico, dividido em especialidades, voltando-se para o indivíduo isolado e fragmentado, não levando em conta todo o contexto do meio em que vive.

a busca pela valorização de tudo que se interage com o indivíduo e pelo contexto de sua existência, associada resolutividade das ações técnicas diante dos problemas clínicos individuais, fez nascer a estratégia de saúde da família.

essa estratégia assume não uma nova delimitação de espaços geográficos para o desencadeamento das ações setoriais, mas a construção de uma nova relação entre o setor saúde e a comunidade.

a referida estratégia jamais deverá ser vista como alternativa barata de se prover assistência à população à margem do sistema tradicional. sua implantação e sua expansão não almejam um paralelismo de ações, pois têm como objetivo maior desencadear um verdadeiro processo de reformulação do modelo de atenção à saúde.

a estratégia de saúde da família responde às diretrizes e ao que se almeja de um novo modelo, pois objetiva o diagnóstico e a abordagem de agravos de forma mais integral, indo além da concepção biológica constatada, contextualizando o indivíduo em sua realidade familiar e social.

a referida estratégia disseminar-se-á com a lógica básica de atenção à saúde a todo sistema, objetivando gerar novas práticas, em que se afirme a indissociabilidade entre os trabalhos clínicos e sanitários.

assim sendo, além do trabalho desenvolvido nas equipes de saúde da família, o médico deverá mudar sua forma de fazer saúde em todos os níveis setoriais, ou seja, que cada profissional de saúde, onde quer que esteja desempenhando suas funções, esteja voltado a uma prática integral e levando sempre em conta o contexto social do indivíduo.

já o médico que desenvolverá suas funções em uma unidade de saúde da família deverá estar capacitado para o processo de gestão local de sistemas de saúde, observando a concepção de saúde coletiva, seguindo os princípios de universalidade, equidade, integralidade e racionalidade das ações. sem despreocupar-se, porém, com sua capacidade clínica para o desenvolvimento de uma apropriada atenção à saúde da criança e do adolescente, da mulher e do adulto em geral, mediante a uma abordagem integral e familiar.

entretanto, não se pode conceber a organização de um novo sistema de saúde que conduza à realização de novas práticas assistenciais sem que, concomitantemente, invista-se na formação e na permanente capacitação de seus recursos humanos.

não mais se aceita a formação em saúde isolada do modelo assistencial proposto, pois, assim ocorrendo, todos perdem: o profissional inadequado ao modelo se frustra e torna-se incapaz de prestar serviços tecnicamente competentes e esperados; a escola se desprestigia, pois apresenta à sociedade profissionais dela desvinculados e “incompetentes” para responder a suas verdadeiras necessidades; e, finalmente, a própria população, tendo em vista que não terá suas expectativas respondidas e seus principais problemas solucionados.

a busca de um trabalho conjunto, entre universidade e serviços de saúde, alicerceia-se na premissa de que a meta de ambos, em última instância, é melhorar o nível de saúde e a qualidade de vida da sociedade, considerando saúde como processo de equilíbrio dinâmico do indivíduo consigo mesmo e com o meio em que vive.

deseja-se, então, a formação médica voltada para um profissional geral, competente, com características técnicas adequadas e humanismo necessário para a abordagem integral do indivíduo, de sua família e de seu meio, independente da especialidade que venha a desenvolver ao término de seu curso.

partindo dessa premissa é que as instituições de ensino vêm rediscutindo sua atuação na formação de profissionais mais adequados ao novo modelo, técnica e ideologicamente falando.

entretanto, praticamente impossível será obter qualquer mudança efetiva no ensino médico sem que o modelo sistêmico assistencial seja, de fato, reformulado.

mesmo que se repasse para o aluno as bases técnicas e conceituais do sistema proposto, eles terão, após se formarem, de se adequar à realidade do mercado, deixando para traz toda uma concepção ideológica, filosófica e doutrinária de um modelo melhor.

assim sendo, não se pode esperar mudanças unilaterais ou acreditar que o sistema possa ser exitoso em sua nova proposta apenas quando os profissionais adequados a essa transformação forem formados pelas escolas. urge uma atuação conjunta ensino e serviço para que se atinja os objetivos propostos.
o ministério da saúde, juntamente com as secretarias estaduais e municipais de saúde, vem, ao longo dos últimos anos, priorizando o desenvolvimento da estratégia de saúde da família, com a implantação de esquipes específicas, ao longo do território nacional (figuras 1 e 2), bem como com o desenvolvimento de discussões específicas voltadas à mudança da prática nas diversas unidades de saúde e na formação dos futuros profissionais. dessa forma, vem-se intensificando o desenvolvimento da estratégia em inúmeros municípios brasileiros, atingindo, atualmente, 1.117 municípios com equipes de saúde da família, mais de 20% dos existentes, totalizando um total de 3.147 equipes de saúde da família, correspondendo a uma cobertura populacional de cerca de 11 milhões de brasileiros.





a meta que o ministério da saúde está trabalhando é de se atingir, ao final do corrente ano, a seis mil equipes de saúde da família, evoluindo para 20 mil até o ano 2002 (figura 3). esse quantitativo representa uma cobertura populacional de mais de 50% da população brasileira, descartando, assim, por completo, qualquer possibilidade de ser um programa paralelo ou marginal ao sistema de saúde do país.