Revistas Fase R003 Id Materia 858






Ponto de Vista
A favor da vacina contra o HIV
Valéria Petri
Professora titular da Disciplina de Dermatologia Infecciosa e Parasitária do Departamento de
Dermatologia da Escola Paulista de Medicina – Unifesp.

A pandemia de infecção pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV) é um desafio sem precedentes na história da Humanidade. Entre os motivos urgentes de preocupação geral e, em particular, da comunidade científica está o fato de que, uma vez instalada a infecção por esse agente, essencialmente transmitido pelas vias sexual e sanguínea, está ameaçada a sobrevivência dos indivíduos infectados.
A evolução da infecção por HIV tem implicações sociais sérias e, ainda que aconteçam remissões animadoras com a terapêutica antiretroviral combinada, trata-se de processo progressivo, com a possível exceção de um grupo limitado de indivíduos conhecidos como long term non-progressors. Não se discute, pois, a urgência do controle da pandemia por todos os meios.

O objetivo central da vacinação contra muitos patógenos é o de prevenir a doença e o sucesso da imunização ativa contra algumas doenças infecciosas – a erradicação da varíola e a eliminação da poliomielite, esperada para o ano 2000, são exemplos marcantes do impacto da vacinação em massa – fez da perspectiva da imunização anti-HIV uma abordagem muito atraente. No confronto entre outros tantos patógenos e o hospedeiro humano costuma ocorrer infecção aguda, ocasião em que uma fração dos infectados se recupera, passando a expressar imunidade consistente contra o mesmo agente e/ou contra microrganismos relacionados. Como regra, a natureza da imunidade protetora expressa pelos que se recuperam da infecção pode ser usada como diretriz do tipo de resposta que a vacina seria capaz de induzir, com o fim de proporcionar proteção a outros hospedeiros humanos.

No entanto, a complexidade da patogênese da HIV-infecção/doença não permitiu, ainda, a obtenção de respostas adequadas à proteção do hospedeiro, como ocorreu com as tentativas empíricas bem sucedidas de desenvolvimento das vacinas contra varíola e poliomielite. A experiência acumulada nos anos de pandemia de infecção pelo HIV indica que imunidade consistente anti-HIV e ant-SIV (Simian Immunodeficiency Virus) pode ser gerada com maior eficiência por vírus vivos. Existe também evidência epidemiológica de que a infecção pelo HIV-2 pode oferecer proteção contra o HIV-1, ou seja, existe razoável proteção cruzada, reduzindo, em parte, o grande receio em torno da variabilidade mutacional do HIV.

Ainda que seja importante a perspectiva teórica de produção de uma vacina capaz de prevenir a doença após a infecção pelo HIV – ou promover modificações positivas no comportamento da infecção (e da doença) por HIV -, o propósito central continua sendo a prevenção da infecção pelo HIV. Isso significa que a resposta imunitária induzida pela vacina ideal deveria ser o clareamento rápido das (diversas) células infectadas pelo retrovírus, antes que ocorresse multiplicação viral secundária e que se estabelecesse o estado de infecção.

A vacina ideal tem, então, como pré-requisito ser segura, fácil de administrar, ser estável sob condições adversas, ser barata e ser capaz de induzir imunidade duradoura contra um amplo espectro de cepas do retrovírus.

Por ora, parece pouco provável que vírus atenuados venham a ser utilizados no mundo desenvolvido e, se áreas de alto risco no mundo em desenvolvimento poderão ser campos de experimentação, esse é ainda um problema ético que implica em muita discussão. O essencial é que evoluam as pesquisas no sentido de esclarecer qual a natureza da proteção eficiente contra o HIV, quem sabe a partir das investigações com o SIV, entendendo os mecanismos de indução de imunidade protetora, no mais curto prazo de tempo possível. Isso se impõe em vista da natureza universal da epidemia de Aids e do fato de muitos indivíduos infectados viverem em regiões do mundo nas quais a terapêutica medicamentosa é cara e impossível de conseguir e controlar.

Se, por um lado, a urgência exige resultados rápidos, sem falsas expectativas ou supervalorização de progressos pouco realistas, por outro lado não devem ser subestimados resultados de pesquisas, eventualmente, promissoras. Nunca se deve negligenciar o fato de que as questões relacionadas ao HIV são motivo de grande comoção social. A mídia e o público devem ser constantemente educados e informados sobre os progressos consistentes e sobre as implicações dos sucessos e insucessos da investigação científica.

A prevenção da transmissão do HIV em programas contínuos parece ser impraticável com estratégias que dependam somente de controle medicamentoso. Mais do que qualquer outra doença para as quais as vacinas são desenvolvidas, a infecção pelo HIV é prevenida pela promoção de mudanças de comportamento e intervenções educativas. Levadas à cena com constância e em larga escala, respeitando as diferenças, essas providências poderiam ser bem-sucedidas – por ora, seriam as vacinas socioculturais e políticas disponíveis contra o HIV, de grande utilidade contra a pandemia mais grave dos nossos tempos.