Numeração de páginas na revista impressa: 52 à 55
Introdução
Tradicionalmente, há mais de cinco décadas o método anestésico local mais utilizado para a uretra peniana é o bloqueio com gel de lidocaína 2%(1). Esta técnica permite, inclusive, realizar cirurgias endoscópicas, como a uretrotomia interna(2). Em 2002, Ye e Rong-Gui publicaram uma nova anestesia para as uretrotomias internas: a técnica intracorpo esponjosa. Após a aplicação de 3 ml de lidocaína 1% na glande, a anestesia da uretra peniana era obtida. Tal técnica se mostrou eficaz e segura, possibilitando a realização de cirurgias em hospital-dia, o que minimizou custo e permitiu a alta do paciente no mesmo dia(3). O mesmo grupo chinês publicou outros dois relatos, inclusive tentando estender o uso desta técnica anestésica inovadora para outras cirurgias urológicas(4,5). O objetivo deste trabalho é mostrar a nossa experiência com esta anestesia, procurando demonstrar os limites da anestesia, a sua segurança e os outros casos em que o seu emprego foi possível. Métodos
Entre novembro de 2002 e outubro de 2007 foi realizado estudo prospectivo, utilizando a técnica anestésica intracorpo esponjosa em todos os pacientes que necessitaram uretrotomia interna ambulatorial e outras cirurgias com envolvimento da glande ou da uretra peniana. Após consentimento informado, injetava-se 3 ml de lidocaína 1% na glande, num ângulo de 45º e aguardando-se cinco minutos para a realização do procedimento. Especial atenção foi dada a envetuais complicações de ordem cardiorrespiratória com a disponibilização de material de emergência médica e monitorização. Ao fim do procedimento a avaliação da dor era feita com uso de escala visual e questionário para avaliar se a anestesia havia sido obtida e se o paciente aceitaria o método novamente, caso necessário. Procurou-se, ainda, definir os limites da dor, tanto na glande (limite distal) como na uretra (limite proximal).
Resultados
Num total de 353 pacientes nos quais a técnica foi utilizada, 45 foram submetidos à cauterização de condiloma peniano glandar, 31 pacientes portadores de estenose da uretra peniana submetidos à uretrotomia interna, 28 meatotomias uretrais e 5 ressecções de neoplasias malignas. Outros 244 pacientes submetidos à cistoscopia receberam a técnica como método complementar à anestesia tópica tradicional com lidocaína gel 2% intra-uretral. Anestesia glando-uretral foi obtida em todos os pacientes. Deste total, cinco se recusaram a repetir a técnica caso necessário. Em sete foram necessárias injeções adicionais de 1 ml próximo ao freio peniano, o que define esta região como o limite distal do alcance da anestesia. Todos pacientes submetidos à cistoscopia relataram dor quando o aparelho atingia a uretra posterior e o colo vesical, definindo esta região como os limites proximais de alcance da anestesia com a lidocaína. Não houve complicações ou efeitos colaterais e todos os pacientes receberam alta uma hora após o procedimento.
Discussão
A urologia, como as demais especialidades médicas, tem a preocupação constante de reduzir os custos do tratamento de seus pacientes, mantendo a qualidade do atendimento(6). Esta é uma estratégia que vem desenvolvendo-se nas últimas décadas(7). Com o aumento progressivo dos gastos hospitalares, inclusive com restrições às internações e ao uso das salas cirúrgicas, assim como a elevação do custo de pessoal, qualquer estratégia que melhore a relação custo-benefício é sempre bem-vinda. O uso de procedimentos e cirurgias ambulatoriais minimamente invasivas, o aprimoramento das drogas e técnicas anestésicas locais e a evolução da endoscopia urológica têm contribuído muito nesse sentido(8,9).
O desenvolvimento e posterior uso da sedoanalgesia nas cirurgias urológicas de menor porte, tanto endoscópicas quanto abertas, foi um dos marcos na tentativa de se melhorar a relação custo-benefício. Ela permitia manter a eficácia anestésica ao mesmo tempo em que a alta era precoce, havia enorme redução de custos e aceitação por até 93% dos pacientes. Mas ainda era necessária a presença do anestesista e a técnica não tinha segurança confirmada em crianças e pacientes com comorbidades importantes, devido ao risco anestésico elevado nestes grupos(9).
Tradicionalmente há mais de cinco décadas se emprega a lidocaína na forma gel, por via uretral, para a anestesia de cistoscopias e dilatações uretrais(1). Ademais, há pouco mais de duas décadas esta mesma técnica tem sido empregada para uretrotomias endoscópicas(2). Intrigante é, porém, o questionamento que existe sobre a fórmula química da lidocaína utilizada, por via uretral, ser a responsável pelo incômodo durante a instilação, já que quando comparado ao uso do gel aquoso, sem a droga anestésica, este último proporcionou desconforto significativamente menor(10). Uma alternativa para minimizar tal incômodo pode ser a instilação uretral do gel de lidocaína 2% resfriado a 4°C(11).
Há cinco anos Ye e Rong-Gui publicaram uma técnica de anestesia local inédita(3). Batizaram-na de “intracorpus spongiosum anesthesia”, ou seja, a aplicação de anestesia no corpo esponjoso, mais precisamente através da injeção lenta, em ângulo de 45°, de 3 ml de lidocaína 1% na glande destes pacientes. Isto na tentativa de anestesiar a glande e a uretra de homens que seriam submetidos à uretrotomia anterior por estenose uretral. Apesar de ser uma série pequena, de 23 pacientes, 95,7% não tiveram dor ou desconforto, caracterizando o sucesso deste método inovador. Calcularam, também, a duração do tempo anestésico em 90 minutos. Cerca de dois meses depois da publicação deste relato original iniciamos nossa experiência, que desde o início se mostrou muito satisfatória.
A uretra anterior humana e a glande são um único órgão, formado por um tubo central epitelizado e, próximo à membrana basal, por camada de tecido conectivo que contém os sinusóides vasculares do corpo esponjoso, além de fibras musculares lisas(12). Esta anatomia intrínseca pode explicar o porquê de se aplicar a lidocaína e a mesma se difundir por toda a glande e corpo esponjoso, anestesiando, concomitantemente, a uretra anterior. Os princípios desta difusão provavelmente se assemelham aos do tradicional bloqueio de Bier para anestesia regional intravenosa muito usada em cirurgias ortopédicas, mas sem os inconvenientes do uso do torniquete e de volumes elevados de anestésico(13).
Ye e Rong-Gui continuaram a empregar a técnica, proporcionando a extensão não só para uretrotomias internas, como também para outros procedimentos, além de verificar qual o tempo para se obter a anestesia e qual o impacto do emprego de uma injeção no pênis(4,5). Utilizaram uma escala visual para averiguar a experiência subjetiva da dor nestes homens. Verificaram que a anestesia era obtida imediatamente após a aplicação da injeção, provavelmente por difusão da lidocaína no corpo esponjoso, antes que a mesma atingisse a circulação sangüínea. O ato da injeção glandar causou dor instantânea menor em 88% dos homens e dor moderada nos demais. Quando questionados, estes últimos referiram que a dor proporcionada pela injeção era tolerável e que, inclusive, poderia ser ignorada. Nestes relatos, concluíram que era possível submeter os pacientes a cirurgias menos dispendiosas, minimamente invasivas, ambulatoriais, com anestesia local pouco dolorosa, que permitia alta precoce, logo após o procedimento. Ressaltaram que eles antes deveriam ser internados e submetidos à anestesia regional, com no mínimo um dia de internação(4,5).
Eventuais questionamentos poderiam surgir com o emprego de uma droga anestésica em um tecido ricamente vascularizado como o corpo esponjoso, principalmente em relação à segurança e toxicidade. Mas a farmacocinética da lidocaína é conhecida há vários anos e a droga é empregada por via endovenosa inclusive no tratamento de arritmias cardíacas e do infarto do miocárdio(14-16).
Houve tentativas anteriores de se utilizar anestesia tópica para meatotomias uretrais. Uma delas através do uso de um creme com a associação de lidocaína e prilocaína (EMLA®). Após a aplicação local do creme por uma hora, a pequena cirurgia foi realizada com sucesso, sem dor, em 95% dos pacientes. Pontos contrários ao uso deste creme são a possibilidade de se usar pouco anestésico, do mesmo poder se espalhar, perdendo o contato com o local a ser operado, da absorção errática e variável de indivíduo para indivíduo e dos riscos de se usá-la intra-uretral, dada à possível toxicidade da prilocaína(17).
Nosso trabalho é importante porque proporcionou contribuições ao entendimento e uso desta técnica anestésica inovadora. Conseguimos definir os limites proximais (uretra membranosa) e distais (frênulo peniano) de alcance da lidocaína ao se difundir pelo corpo esponjoso. Verificamos que é possível usá-la em procedimentos mais simples, como as cistoscopias de diagnóstico ou controle, minimizando a dor e o desconforto de quando se utiliza apenas a lidocaína gel 2% como droga anestésica intra-uretral. A utilização da técnica intracorpo esponjosa também fez com que deixássemos de utilizar a sedação venosa nos pacientes, o que sabidamente gerava risco maior de comorbidades, especialmente as respiratórias.
Intencionamos aprimorar a técnica, visando diminuir e mesmo acabar com a dor da injeção. Para este propósito, talvez a associação prévia do creme de lidocaína-prilocaína no exato local em que se dará a injeção ou o uso de agulhas de injeção mais finas, como as usadas pelos dentistas, possam auxiliar-nos nesse sentido. Conclusões
A técnica intracorpo esponjosa se mostrou factível, eficaz e segura quando a intenção foi anestesiar a glande ou a uretra anterior. Próximo ao freio foi necessária a injeção adicional de anestésico e o limite proximal estabelecido foi a uretra membranosa. Não ocorreram efeitos colaterais importantes e a aceitação por parte dos pacientes foi enorme. Houve diminuição de custos, pois os pacientes não necessitaram internação e receberam alta uma hora após o procedimento.
|
1. Persky L, Davis HS. Xylocaine as a topical anesthetic in urology. J Urol 1953; 70(3):552-4. 2. De Campos Freire G, Cordeiro P, Pachelli LC, Borrelli M, Menezes de Goes G. Endoscopic urethrotomy under local anesthesia. Arch Esp Urol. 1985; 38(1):51-3. 3. Ye G, Rong-Gui Z. Optical urethrotomy for anterior stricture under a new local anesthesia: intracorpus spongiosum anesthesia. Urology, 2002; 60(2):245-7. 4. Ye G, Shan-Hong Y, Xiang-Wei W, Hua-Qi Y, Rong-Gui Z. Use of a new local anesthesia-intracorpus spongiosum anesthesia-in procedures on anterior urethra. Int J Urol. 2005; 12(4):365-8. 5. Ye G, Wang XW, Yi SH, Zhang YG, Liu WC. Outpatient procedures on the glans and anterior urethra under a new local anaesthesia: intracorpus spongiosum anaesthesia. Asian J Surg. 2005; 28(4):282-5. 6. Boxer RJ. Methods of cost control in urologic care. Urology 1978; 12(4):429-33. 7. Tomoyoshi T. Importance of medical economics in urology. Hinyokika Kiyo 1987; 33(10):1515-7. 8. Sachse H. Cystoscopic transurethral incision of urethral stricture with a sharp instrument. MMW Munch Med Wochenschr. 1974; 116(49):2147-50. 9. Birch BR, Anson KM, Miller RA. Sedoanalgesia in urology: a safe, cost-effective alternative to general anaesthesia. A review of 1020 cases. Br J Urol 1990 Oct; 66(4); 342-50. 10. Ho KJ, Thompson TJ, O’Brien A, Young MR, McLerne G. Lignocaine gel: does it cause urethral pain rather than prevent it? Eur Urol 2003; 43(2):194-6. 11. Goel R, Aron M. Cooled lignocaine gel: does it reduce urethral discomfort during instillation? Int Urol Nefhrol 2003; 35(3):375-7. 12. Orlandini SZ, Orlandini GE. Ultrastructure of human male urethra. Arch Androl 1989; 23: 51-9. 13. Hannington-Kiff JG. Bier’s block revisited: intercuff block. J R Soc Med 1990 Mar; 83(3): 155-8. 14. Greenblatt DJ, Bolognini V, Koch-Weser J, Harmatz JS. Pharmacokinetic approach to the clinical use of lidocaine intravenously. JAMA 1976; 236(3):273-7. 15. Knall RD Jr. Lidocaine and myocardial infarction. JAMA 1968; 206(3):647-8. 16. Grossman Jr., Lubow LA, Frieden Jr., Rubin IL. Lidocaine in cardiac arrhythmias. Arch Int Med 1968; 121(5): 396-401. 17. Cartwright PC, Snow BW, Mcnees DC. Urethral meatotomy in the office using topical EMLA cream for anesthesia. J Urol 1996; 156(2 Pt 2):857-8; discussion 858-9. |