Numeração de páginas na revista impressa: 48 à 51
Introdução O úraco é um canal que mede de 5 a 10 cm e comunica o alantóide (estrutura ligada a parte posterior do intestino do embrião, auxiliando na formação da placenta através de seus vasos) a bexiga fetal primitiva. É formado por três camadas: o lúmen, composto de epitélio transicional ou cubóide; a camada submucosa; e a camada externa muscular lisa. Durante o quarto e o quinto mês de desenvolvimento fetal a bexiga desce para a pelve, enquanto o lúmen do úraco é progressivamente obliterado até a formação de um cordão fibromuscular, unindo o domo da bexiga ao umbigo. Este cordão fibromuscular passa a ser conhecido como o ligamento umbilical mediano(1). Apesar do fechamento do úraco ocorrer até o terceiro trimestre do desenvolvimento fetal, autópsias em adultos mostram cerca de 30% de presença de um lúmen microscópico. Esta falha da obliteração proporciona uma variedade de anomalias, compreendendo úraco patente, cisto de úraco, divertículo úraco-vesical e a formação de neoplasias benignas e malignas(2).
O carcinoma de úraco é uma doença extremamente rara e na maioria das vezes se apresenta como uma doença letal. Ocorre geralmente na junção remanescente do úraco com o domo vesical e, a despeito de sua mucosa composta por células transicionais, a maioria dos carcinomas do úraco são adenocarcinomas(3). Isso se deve à provável metaplasia deste epitélio transicional, com subseqüente malignização do mesmo(2).
A estimativa de incidência anual deste tumor na população em geral é de 1 a 5 milhões de indivíduos, representando apenas 0,01% de todos os tumores malignos em adultos(2).
O tumor maligno de úraco compreende cerca de 0,17% a 0,34% de todas as neoplasias de bexiga, representando de 20% a 39% dos adenocarcinomas vesicais(4). Por sua vez, a incidência estimada de adenocarcinoma primário está em torno de 0,5% a 2% de todos os tumores malignos de bexiga. A grande maioria dos adenocarcinomas de úraco é do tipo mucinoso, sendo também encontrado tipos histológicos ainda menos comuns, como carcinoma de células transicionais, carcinoma de células escamosas, carcinoma de pequenas células e sarcomas(5,6).
Embora existam poucos estudos com casuísticas sobre carcinoma de úraco, observa-se que os homens são comprometidos duas vezes mais que as mulheres, afetando indivíduos com idade média de 56 anos(5). Em cerca de 33% dos casos os indivíduos afetados com carcinoma de úraco têm menos de 55 anos(1).
Na literatura são identificados três tipos de sistemas de estadiamento do tumor de úraco: Sheldon, Henly e Ontário. Dentre estas, destacam-se as duas primeiras, sendo a de Henly mais simplificada e, posteriormente, modificada pela clínica Mayo(7) (Tabela 1).
Fatores de risco
Os fatores de risco para o desenvolvimento do adenocarcinoma de úraco são pouco definidos e não está claro se carcinogênios na bexiga exercem alguma ação como no carcinoma urotelial(8). Entretanto, modelos de regressão logística mostram que dois fatores têm impacto no risco: idade superior a 55 anos (risco três vezes maior) e hematúria (risco de 17 vezes)(1).
Quadro clínico
Os sintomas clínicos apresentados são hematúria, sintomas “irritativos” (disúria, urgência e freqüência miccional) e dor suprapúbica. Pelo fato do tumor estar localizado numa região relativamente silenciosa, os pacientes vão apresentar sintomas num curso tardio da doença. Dentre os sintomas, a hematúria é a mais freqüente, presente em até 80% dos casos(1,9). Observou-se que nos pacientes que apresentam hematúria o risco para malignidade aumenta em 17 vezes(1). Embora 90% dos adenocarcinomas de úraco são produtores de mucina, a mucosúria está presente em somente 9% dos casos. Porém, quando presente, é altamente sugestiva da presença de doença provinda do úraco(9). Alguns casos podem apresentar massa suprapúbica palpável e secreção mucinosa ou hemática pelo umbigo, evidenciando a patência do úraco. Na Tabela 2 estão ilustrados os sintomas e sua freqüência.
Diagnóstico
O exame inicialmente solicitado é o ultra-som. Os achados ultra-sonográficos mostram espessamento da parede anterior da bexiga, muitas vezes com contato com a parede anterior do abdome. Após um achado com esta característica no ultra-som, está indicado prosseguir a avaliação através de tomografia computadorizada. Num estudo com 25 pacientes com adenocarcinoma de úraco, os achados tomográficos foram massa mista (sólido-cística) em 84% e completamente sólida em 16%. Em outro trabalho foi observado que 25% dos tumores tinham componentes císticos(1). Em 72% dos casos havia presença de calcificações, variando desde puntiformes até extensas áreas calcificadas(2). A invasão da parede vesical foi possível ser detectada em 52% dos casos, apesar de 92% dos pacientes terem comprometimento da parede vesical. A Figura 1 ilustra achados do adenocarcinoma de úraco na tomografia computadorizada. Na ressonância magnética o achado principal é de hipersinal em T2 junto a cúpula vesical. A intensidade do hipersinal é proporcional a quantidade de mucina no interior do tumor(10).
Tratamento
Cirurgia O principal tratamento do adenocarcinoma de úraco é a remoção cirúrgica. Baseado nos resultados de séries retrospectivas, a cistectomia parcial é freqüentemente usada como técnica de eleição, pois, comparativamente, os resultados a longo prazo não diferem entre cistectomia radical e parcial(9,11). A cirurgia deve englobar a ressecção ampla da cúpula vesical com ressecção em bloco do úraco, incluindo o umbigo, fáscia posterior do músculo reto abdominal, peritônio adjacente e a gordura perivesical, estendendo-se até porção lateral da pelve(7). A Figura 2 mostra a peça cirúrgica, sendo evidenciado o umbigo, o úraco e a cúpula de bexiga. A linfadenectomia permanece controversa e, quando realizada, deve envolver as cadeias linfonodais ilíaca comum, ilíaca externa, obturatória e hipogástrica(7). A presença de metástases em linfonodos é de 16%(7).
As taxas de cura com cistectomia parcial extensa chegam a 70% nos tumores clinicamente localizados e a 80% nos casos em que o tumor está confinado à peça cirúrgica(7). Pacientes com doença confinada a bexiga, úraco e gordura periuracal têm sobrevida, em cinco anos, de 88%, ao passo que nos casos em que existe invasão da cavidade peritoneal não há sobrevida em cinco anos(7). Na Tabela 3 são apresentados os resultados oncológicos após cirurgia.
Figura 1 – Tomografia computadorizada de abdome com contraste endovenoso, mostrando o tumor na parede vesical anterior com continuidade para a parede abdominal.
Figura 2 – Peça cirúrgica de ressecção parcial de bexiga com o tumor (na extremidade da esquerda), úraco, aponeurose posterior, peritônio e cicatriz umbilical (extremidade da direita).
Adaptado de Herr(7).
Cistectomia parcial videolaparoscópica Existem na literatura vários relatos de casos com utilização da técnica laparoscópica(4,12-14). Apesar de sua completa reprodutibilidade como na técnica aberta, os estudos são recentes e não há seguimento dos pacientes a longo prazo que mostre resultados oncológicos iguais ou melhores que a cirurgia convencional.
Recorrência e metástases
Os principais fatores que predizem a sobrevida são o grau do tumor e a margem cirúrgica. Resultados de séries retrospectivas mostram que nos pacientes em que não havia sido realizada a exérese do úraco e do umbigo, a sobrevida foi menor(1,7). A recidiva local costuma ocorrer em média cerca de cinco meses após a cirurgia(1). Numa série de 53 pacientes com adenocarcinoma de úraco não mestastático, 8 (15%) tiveram recorrência local. Destes, seis foram submetidos a nova cirurgia e dois a radioterapia. Quatro pacientes permaneceram livres de doença por 14,8 anos, sendo todos do grupo de cirurgia(1).
Entre 16% e 32% dos pacientes já apresentam metástases no momento do diagnóstico(1,7). Os locais mais freqüentes das metástases são fígado, pulmão e ossos. A Tabela 4 mostra a freqüência de metástases antes e após o diagnóstico.
As metástases ocorrem em 59% dos casos em algum ponto da evolução da doença. A maioria dos pacientes (92%) morre em decorrência das complicações causadas por estas metástases. O tempo entre a descoberta da metástase e óbito varia de acordo com o estádio clínico, mas é, em média, de 12 meses(1).
Tratamento adjuvante
Quimioterapia A quimioterapia tem sido reservada para os casos de doença metastática ou recidiva local. Embora não existam regimes de quimioterapia definidos para o adenocarcinoma de úraco, alguns tumores respondem a regimes com cisplatina(3). Outros regimes também foram descritos e incluem doxorrubicina, ciclofosfamida, 5-fluoracil e paclitaxel, mas não houve diferença na sobrevida entre grupos que receberam quimioterapia e grupos que não receberam(1). Num estudo com 39 pacientes, dois permaneceram vivos por 4,2 e 7,1 anos, recebendo regimes com gencitabina e cisplatina no primeiro e cisplatina, metotrexato, vinblastina e doxorrubicina no segundo(1).
Radioterapia Alguns relatos de caso referem utilização da radioterapia geralmente combinada com cirurgia e quimioterapia em pacientes com recidiva local sem, entretanto, apresentar resultados de benefício de seu uso(1). Não existem evidências de benefício clínico do uso de radioterapia como tratamento primário do adenocarcinoma de úraco(1).
Conclusão
Embora o adenocarcinoma de úraco seja uma doença rara e sua apresentação clínica diversa, o urologista deve sempre estar atento a pacientes que apresentem dor suprapúbica e espessamento da cúpula vesical em exames de imagem. Até o momento, a cirurgia constitui o único tratamento que pode oferecer cura ao paciente. Para o sucesso da cirurgia, princípios fundamentais como exérese de todo o trajeto do úraco, cicatriz umbilical e margens vesicais negativas devem ser alcançados. Até o momento, tratamentos adjuvantes como quimioterapia e radioterapia não têm atingido bons resultados.
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