Numeração de páginas na revista impressa: 39 à 43
Introdução
A esclerose múltipla (EM) é uma doença crônica do sistema nervoso central, adquirida, de origem inflamatória, provavelmente auto-imune. Doença neurodegerativa da substância branca em que há destruição da mielina por auto-anticorpos, diminuindo assim o impulso nervoso. Acomete principalmente adultos jovens, na faixa etária entre 20 e 40 anos, sendo rara antes dos 10 e após os 60 anos de idade. Mais comum em mulheres (2 para 1), em indivíduos de cor branca, em áreas de clima temperado, tendo alta prevalência na Grã-Bretanha, Canadá e norte dos Estados Unidos (1 em 1.000 norte-americanos acometidos). Fatores genéticos, dietéticos e ambientais estão relacionados com esta estatística. Há associação com antígeno HLA-DR2. Não tem herança direta, porém afeta indivíduos geneticamente suscetíves. A principal característica da esclerose múltipla é sua imprevisibilidade, não ocorrendo curso semelhante em todos os pacientes e cada portador sofre alterações ao longo do tempo.
A esclerose múltipla pode virtualmente produzir qualquer tipo de sintoma neurológico, sendo mais freqüentes as manifestações devido a lesões do quiasma óptico, dos nervos ópticos, do tronco cerebral, do cerebelo e da medula, principalmente dos feixes corticoespinhais e dos cordões posteriores. Na sintomatologia são freqüentes as exacerbações e remissões, geralmente os sinais e sintomas apresentados pelo paciente indicam a existência de mais de uma lesão. As manifestações clínicas dependem das diversas áreas do sistema nervoso em que se localizam essas lesões.
O diagnóstico é basicamente clínico, com base nos sintomas apresentados, tempo de aparecimento e presença de sinais ao exame físico. O exame do líquor com eletroforese das proteínas com IgG elevada e bandas oligoclonais, pode ser útil ao diagnóstico, bem com a ressonância nuclear magnética do cérebro e medula espinhal pode demonstrar placas na substância branca, mais comumente periventricular, sendo pretas em T1 e brancas em T2 e em múltiplos locais na medula espinal.
A esclerose múltipla apresenta basicamente três formas de apresentação, a forma surto-remissão ou remitente-recorrente em que os sintomas agudos se repetem com intervalo de meses ou anos e desaparecem sem deixar seqüelas ou deixam seqüelas pequenas. A forma progressiva secundária, semelhante à fase remitente, porém em cada agudização há piora da doença, deixa seqüelas importantes e, por fim, a forma progressiva primária, em que a doença não ocorre em surtos agudos nem recorre, há uma progressão contínua que vai agravando-se com os anos. Não há como impedir a progressão da doença. O que se pode fazer é acelerar a recuperação durante a fase aguda inicial. Usa-se para este fim corticosteróides e beta-interferon, reduzindo a freqüência das exacerbações. Estudos recentes mostram benefício da ciclofosfamida e da azatioprina em retardar a evolução crônica.
Disfunções miccionais na esclerose múltipla
As disfunções miccionais durante o curso da esclerose múltipla são freqüentes, necessitando de cuidados durante sua evolução. Embora sua freqüência seja amplamente reconhecida, morbidade ao aparelho urinário é tradicionalmente considerada baixa. Mesmo antes do diagnóstico, as manifestações urinárias podem ser aparentes e são, habitualmente, relegadas para um segundo plano, quando predominam as outras manifestações neurológicas, porventura mais graves. Esses pacientes compreendem ± 6%, sendo que as primeiras manifestações da doença são miccionais, muitas vezes taxadas como secundárias a cistites ou hiperplasia prostática, sem inferir seu real diagnóstico.
Em torno de 90% dos pacientes com EM vão apresentar queixas do trato urinário em algum ponto da doença, sendo que 70% terão hiperatividade demonstrada pela avaliação urodinâmica. Dos sintomas urinários, a queixa mais freqüente é a urgência, que chega a atingir 83% dos pacientes, produzindo incontinência em 75%. Das disfunções miccionais, a dissinergia detrusor esfincteriana é a mais comum, atingindo em torno de 50% dos doentes.
Esses pacientes terão sintomas que podem afetar o seu estilo de vida, como incontinência urinária, urgência e freqüência, podendo sofrer algumas privações do convívio social. Eles também podem sofrer de sintomas debilitantes do trato urinário, tais como infecções do trato urinário freqüentes ou recorrentes e também, por vezes, danos ao trato urinário superior. A maioria desses pacientes se apresenta nos anos mais produtivos de sua vida, tornando assim a esclerose múltipla e suas implicações miccionais ainda mais devastadora.
As alterações miccionais associadas à EM variam amplamente. Podem apresentar-se num espectro, desde hipocontratilidade detrusora e retenção urinária até hiperatividade detrusora, incontinência, sintomas irritativos e dissinergia. Esses sintomas não possuem um padrão de surgimento na história natural da doença, aparecendo, em média, seis anos após o início da doença. Alterações detrusoras esfincterianas afetam um em cada dez pacientes no início das manifestações da EM, sendo que esses pacientes cursam com pior prognóstico. Metade dos doentes tem modificações dos seus padrões urodinâmicos durante intervalo de 42 a 45 meses. As variações urodinâmicas com o tempo obrigam a uma repetição regular destes estudos. Globalmente, dentre os pacientes com queixas urinárias, 55% alteram o padrão urodinâmico durante o curso de sua doença.
A baixa especificidade dos sintomas clínicos da disfunção miccional na EM e necessidade de identificação de fatores cistométricos de pior prognóstico para deterioração do trato urinário superior corroboram para o uso do estudo urodinâmico nesses pacientes.
O predomínio da síndrome da bexiga hiperativa é relatado com uma prevalência de 30% a 90%, sendo que os sintomas obstrutivos afetam de 30% a 70% dos pacientes com 25% de retenção urinária crônica. Sintomas irritativos e obstrutivos coexistem em 59% dos homens e 51% das mulheres. A hiper-reflexia comumente manifesta-se por urgência, freqüência e sintomas irritativos generalizados. Freqüentemente é associado a dissinergia detrusor esfincteriana, caracterizada por contração simultânea do detrusor e do esfíncter uretral. Essa dissinergia pode levar a sérios problemas.
Alterações miccionais
Hiperatividade detrusora é a anormalidade urodinâmica mais comum, estando presente em 50% a 90% dos casos, seguida de hipocontratilidade em torno de 25% dos pacientes e diminuição da complacência em 10% desses. Dos pacientes sintomáticos, 34% não possuem alterações urodinâmicas.
A dissinergia vesicoesfincteriana é a disfunção miccional mais característica da EM. A causa dessa é decorrente da perda do controle do centro cerebral da micção ou devido à interrupção direta do reflexo espinobulbar. Atinge aproximadamente 50% dos pacientes. A presença de dissinergia parece correlacionar-se com a gravidade da doença e pode ser até um indicador urodinâmico de doença progressiva. A duração da EM influencia na evolução da apresentação urodinâmica apenas nas DDE, a prevalência aumenta com o tempo, provavelmente devido à baixa taxa de regressão após seu surgimento.
Chegou-se a encontrar hiperatividade detrusora em 78% dos pacientes com associação com hipocontratilidade durante a micção em 63%. Este aparente paradoxo significa que existem contrações involuntárias do detrusor durante o enchimento, mas o rendimento muscular durante a micção é baixo. Nem sempre o jato fraco e o resíduo resultam de DDS ou do mau relaxamento miccional da uretra, mas sim de hipocontratilidade do detrusor. Mesmo nos pacientes com hiperatividade, as contrações não são mantidas e o esvaziamento vesical é ineficaz em até metade deles. Nestas bexigas hipocontráteis parece haver maior número de lesões da medula dorsal.
Apesar da hiperatividade detrusora, das dissinergias e das complicações urológicas infecciosas, o envolvimento renal é de baixa importância clínica.
Alterações do trato urinário inferior
Infecção do trato urinário é descrita em 30% dos pacientes com EM. Análogo a outras populações neurogênicas, especialmente aqueles com lesão raquimedular, sondas de demora, altas pressões detrusoras e a existência de resíduo pós-miccional maior que 300 ml podem ser considerados fatores contribuintes para recorrências dessas ITUs. Dano morfológico ao trato urinário inferior é relatado em uma média de 30%, incluindo pseudovertículos vesicais, trabeculação e espessamento parietal.
Alterações trato urinário superior
As manifestações altas são raras, mas 16% dos doentes apresentam hidronefrose, pielonefrite e refluxo vesicoureteral. As crises de pielonefrite se associam a um volume residual superior a 30%. Litíase tem uma incidência em torno de 2% a 11% e, muito raramente, há evolução para insuficiência renal crônica.
Correlação com exames de imagem
Não há correlação entre os achados da ressonância magnética e dos urodinâmicos e entre estes e as queixas, sendo que a avaliação urodinâmica é insubstituível no planejamento terapêutico desses doentes.
Verificou-se que as queixas urológicas se correlacionam apenas com as imagens medulares. A correlação clínico-radiológica cerebral é fraca, particularmente nas formas primárias progressivas. Por razões pouco explicadas, as lesões piramidais parecem correlacionar-se com a hiperatividade detrusora e as cerebelares com a hipocontratilidade do detrusor.
Correlação com alterações urodinâmicas
Correlações entre estado neurológico e cistometria têm sido relatadas. A correlação entre hiperatividade detrusora e a severidade das deficiências sensitivas-motoras ou lesão piramidal parece provável. A correlação entre DDS e lesão piramidal ou o grau da deficiência tem sido sugerida. Não há correlação entre hipocontratilidade e status neuronal. Correlação entre certas lesões e achados cistométricos é controverso, mas a presença de lesões encefálicas e supra-sacrais predispõe a DDS e lesões do tronco cerebral a hipocontratilidade.
Mortalidade
Mortalidade na EM geralmente é subestimada. Poucos estudos correlacionaram mortalidade nessa doença com causas urológicas, geralmente demonstrando algum dano após 40 anos da doença. No entanto, a sobrevida parece ser menor naqueles em que o surgimento de alterações vesicoesficterianas se dá nos primeiros dez anos da doença.
Contudo, a duração das alterações miccionais na EM e sua variabilidade com o passar do tempo desempenham um impacto negativo na morbidade desses pacientes, necessitando de um manejo contínuo e correto.
Fatores de risco para deterioração do trato urinário superior
Talvez o principal fator de risco para lesões do trato urinário superior seja o passar dos anos.
O risco de lesão parece ser maior entre o sexto e o oitavo ano de surgimento das alterações miccionais. Os homens, devido a pressões detrusoras maiores e maior amplitude das contrações involuntárias, estão sob mais risco de lesão, embora não se tenha conseguido provar pior prognóstico relacionado ao gênero. Risco de pielonefrite é maior nos pacientes com refluxo vesicouretral. Estão sob maior risco de lesões os pacientes com CNI de grande amplitude e menor risco aqueles com hipocontratilidade. Dissinergia detrusor esfincteriana indiretamente influencia nessas complicações, na medida em que écorrelacionada com a severidade das lesões neurológicas, as quais, por si só, alteram o prognóstico.
Cateterismo de demora é reconhecido como fator de risco para deterioração do trato urinário superior, devido à predisposição a infecções. Além disso, alguns pacientes fazem uso de drogas imunossupressoras para tratamento da EM, tendo maior risco de malignização. Resumidamente, fatores de risco comprovados para lesões incluem duração da EM maior que 15 anos, cateterismo crônico, grande amplitude das contrações não inibidas e grandes pressões detrusoras. Fatores de risco prováveis incluem sexo masculino, idade maior de 50 anos e dissinergia detrusor esfincteriana.
Avaliação
Os pacientes com esclerose múltipla e alterações miccionais devem ser avaliados segundo seus sintomas e quanto a lesões do trato urinário superior. Naqueles assintomáticos e sem lesões se preconiza uma consulta anual com um generalista, sendo avaliados quanto a sintomas e devendo ser solicitado um exame ultra-sonográfico das vias urinárias com medida de resíduo pós-miccional. Qualquer alteração ou surgimento de sintomas deve ser referenciado a um especialista.
Os pacientes sintomáticos ou com alguma alteração devem ser acompanhados por especialista, avaliando-os com um diário miccional de três dias, exame ultra-sonográfico do trato urinário, urina tipo I e cultura, clearance da creatinina e estudo urodinâmico, com periodicidade anual ou mais precoce conforme alterações nos sintomas ou lesões.
Tratamento
Devido à grande variabilidade de sintomas associada à EM, de sua imprevisibilidade e alterações durante o seu curso, cada paciente deve ter um tratamento específico, mas todos com os mesmos objetivos de promover continência socialmente aceitável, diminuição da amplitude e freqüência das contrações involuntárias e prevenção de danos irreversíveis ao trato urinário.
O uso de cateteres de demora ou cistostomia deve ser tratamento de exceção e, devido ao aumento do risco de malignidade, deve ser associada na avaliação uma cistoscopia periódica, especialmente naqueles que fizeram ou fazem uso de imunossupressores.
Os anticolinérgicos são a pedra fundamental do tratamento, devido à maior prevalência de hiperatividade nos pacientes com EM. Essas medicações induzem a desestimulação colinérgica do detrusor. As drogas disponíveis de primeira linha de tratamento são oxibutinina e tolterodina. A ação da oxibutinina baseia-se em suas ações anticolinérgica, anestésica local, antiepasmódica e bloqueadora dos canais de cálcio. É recomendada a dose de 2,5 a 5 mg, duas a três vezes ao dia. Há também a forma de liberação lenta, sendo administrada uma vez ao dia, com menores efeitos colaterais. Tolterodina é uma medicação similar, mais recente, com menos paraefeitos, usada na dose de 1 a 2 mg, duas vezes ao dia. Propantelina é considerada droga de segunda linha na dosagem de 7,5 a 30 mg, três ou quatro vezes ao dia. Hioscinamina, outra droga de segunda linha, com efeito anticolinérgico e antiespasmódico, usada na dose de 0,125 a 0,375 mg, sublingual, a cada quatro horas. Paraefeitos relacionados aos anticolinérgicos são boca seca, visão turva, taquicardia, sonolência e constipação, geralmente bem tolerados. Os anticolinérgicos não aumentam o tempo entre a sensação e a micção propriamente dita, eles também podem aumentar o resíduo pós-miccional e diminuir a contratilidade detrusora, devendo, portanto, ser utilizados conjuntamente com micções programadas ou cateterismo intermitente.
Outros agentes para tratamento são os antidepressivos, principalmente a imipramina, um inibidor da recaptação de serotonina. Essas drogas têm ação anticolinérgica central e periférica e se mostram como facilitadores do enchimento vesical. Eles diminuem a contratilidade detrusora e aumentam a pressão de saída da bexiga, devendo ser cuidadosamente prescritos naqueles com evidências de obstrução infravesical anatômica ou funcional.
Cateterismo intermitente geralmente é utilizado como complemento de tratamento, já que ele ajuda mas não é a causa da diminuição da freqüência e amplitude das contrações involuntárias. Ele diminui o problema de resíduo pós-miccional, diminuindo o risco de infecção, promovendo também continência. Utilizado geralmente quatro a seis vezes ao dia, promovendo esvaziamento periódico e diminuição do resíduo pós-miccional. Em comparação com sondas de demora, diminui o risco de malignização e formação de cálculos intravesicais. Geralmente é o tratamento de primeira linha, associado aos anticolinérgicos, nos pacientes com dissinergia detrusor esfincteriana.
Injeção de toxina botulínica tipo A na musculatura detrusora se tem mostrado com grande potencial na abordagem do tratamento da hiperatividade. Diminui ou até acaba com as contrações involuntárias, também aumentando discretamente a complacência. Não há protocolo estabelecido, usa-se 200 a 300 u de Botox® ou 500 a 1.000 u de Dysport©, injetadas em 20 a 40 pontos da musculatura detrusora, preservando o trígono vesical. Como efeitos colaterais podemos citar hematúria, dor e retenção urinária, por isso todos os pacientes devem ser informados de um provável uso de cateterismo intermitente, transitório ou definitivo. Seu efeito dura de seis a nove meses, podendo ser repetido após esse período. Na dissinergia detrusor esfincteriana pode ser utilizada a dose de 100 a 200 u de Botox® ou 500 u de Dysport© injetada no esfíncter via transuretral ou perineal.
Devido a variabilidade de apresentações, períodos de remissão e recidivas, associada diversibilidade de mecanismos das disfunções na esclerose múltipla, a terapia definitiva (esfincterotomias e derivações) deve ser encarada com cutela e como condutas de exceção em casos de doença avançada e na falha de todos os outros tratamentos.
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