Revistas Fase R003 Id Materia 3697






Atualização
Como conceituar, diagnosticar e tratar a intolerância à lactose
How to define, diagnose and treat lactose intolerance


Rosana Tumas
Mestre em Medicina pelo Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Médica assistente da Unidade de Nutrologia do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Ary Lopes Cardoso
Doutor em Medicina pelo Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Responsável pela Unidade de Nutrologia do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Correspondência: Rosana Tumas – Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 647 – Cerqueira César. São Paulo – SP. CEP 05403-000 – E-mail: rosanat@icr.hcnet.usp.br

Unitermos: intolerância, lactulose, nutrição.
Unterms: intolerance, lactulose, nutrition.

Numeração de páginas na revista impressa: 13 à 20

Resumo


Introdução: A nutrição adequada é fator indispensável para a promoção do crescimento e desenvolvimento no primeiro ano de vida. A substituição do leite materno pelo leite de vaca, quando necessária deve ser feita com cautela. Além de não suprir as necessidades do lactente, o leite de vaca pode desencadear o aparecimento de situações clínicas que exijam a suspensão parcial ou mesmo total desse alimento. Dentre essas situações, a intolerância à lactose é uma das mais comuns. Definição: Intolerância à lactose é uma síndrome clínica que se manifesta por sintomas gastrointestinais desencadeados após a sua ingestão. Fisiopatologia e manifestações clínicas: A deficiência da lactase reduz a capacidade de digestão e absorção da lactose, desencadeando cólicas, flatulência, distensão abdominal e diarréia, decorrentes do seu efeito osmótico no cólon. Classificação: Deficiência ontogenética de lactase (hipolactasia primária do adulto), deficiência secundária de lactase (decorrente de lesão da mucosa do intestino delgado), deficiência neonatal de lactase (comum em prematuros com menos de 34 semanas de gestação), deficiência congênita de lactase (doença genética muito rara). Diagnóstico: Basicamente clínico, comprovado por teste terapêutico, análise do pH fecal e substâncias redutoras nas fezes, teste de tolerância à lactose, teste do hidrogênio expirado e biópsia intestinal (pesquisa de atividade enzimática), genotipagem. Tratamento: Dieta com restrição parcial ou total da ingestão de lactose, indicada com diagnóstico comprovado; uso de substituto adequado para o leite de vaca, com suplementação de vitaminas e minerais. A reposição enzimática muitas vezes é utilizada como alternativa para o tratamento de pacientes com intolerância parcial da lactose.

Introdução

A chave para se obter um crescimento e desenvolvimento adequados, especialmente no primeiro ano de vida, baseia-se na combinação de diferentes fatores. A nutrição, entretanto, é a chave-mestra deste processo. A observação do ganho pôndero-estatural é de fundamental importância, pois várias patologias podem iniciar sua manifestação clínica apenas com o achado de uma velocidade de ganho de peso e estatura abaixo do esperado para a idade do paciente.

A oferta de uma alimentação adequada para crianças pequenas deve privilegiar tanto os macros como os micronutrientes. O leite materno contempla todas as necessidades do lactente e, na impossibilidade de tê-lo como fonte alimentar principal, toda substituição deve ser cautelosa.

O fato de o leite ser um alimento muito importante nos primeiros anos de vida faz com que toda situação clínica que indique suspensão ou restrição de sua ingestão deva ser seguida de perto, idealmente por pediatra e nutricionista.

São várias as patologias que podem demandar a substituição do leite de vaca na alimentação infantil. As situações mais comuns na prática clínica são casos de intolerância e alergia, entidades clínicas distintas, mas que costumam ser confundidas, pois freqüentemente os termos “intolerância” e “alergia” são utilizados como sinônimos. Assim, torna-se fundamental o estabelecimento da diferença entre estas duas situações, já que elas podem implicar desde apenas um mal-estar até um choque anafilático.

Intolerância alimentar corresponde a um termo genérico que se refere às variadas manifestações clínicas decorrentes de reações adversas desencadeadas por alimentos. Atualmente, tem-se optado por substituir este termo pela denominação “reações adversas aos alimentos”, a fim de diminuir as confusões a respeito das definições de cada situação. As muitas causas destas reações adversas podem envolver mecanismos distintos, o que proporciona o aparecimento de ampla gama de sintomas clínicos.

As reações adversas à ingestão de alimentos podem ser divididas em dois tipos:

1. Reações adversas tóxicas, que ocorrem quando da ingestão de alimentos contaminados com substâncias tóxicas e independem da sensibilidade individual;
2. Reações adversas não tóxicas, que dependem da sensibilidade característica de cada indivíduo, tornando-o temporária ou definitivamente suscetível a desenvolver certas manifestações clínicas quando ingerir determinado alimento1.

As reações adversas não tóxicas englobam situações que compreendem tanto reações de intolerância quanto alergia alimentar.

A alergia alimentar se caracteriza por uma reação imunológica, geralmente desencadeada por uma proteína presente no alimento. No caso do leite de vaca a proteína mais freqüentemente envolvida é a 8 lacto-globulina, seguida da caseína2.

A intolerância alimentar corresponde às alterações que podem ocorrer nos processos metabólicos de digestão e absorção de determinado componente do alimento, geralmente devido a alguma deficiência enzimática, sem haver envolvimento da resposta imunológica neste processo. No caso do leite de vaca, a enzima em questão é a lactase.

Nos casos de alergia alimentar a exclusão total do alimento desencadeante é indicada. Nos casos de intolerância alimentar se indica a exclusão total ou parcial do alimento desencadeante, dependendo de cada caso.

Atualmente se tem observado uma tendência em substituir o leite de vaca na alimentação infantil, sem haver necessariamente uma comprovação diagnóstica que justifique tal conduta. Dependendo do produto utilizado para substituir o leite, deve ser ponderada a suplementação de cálcio, já que o leite constitui a principal fonte deste micronutriente para esta faixa etária3.

Dessa forma, faz-se necessário destacar a importância de se fornecer um aporte adequado de micronutrientes através de suplementação de vitaminas e minerais, sempre que o substituto do leite materno e/ou da fórmula infantil não seja especificamente formulado para atingir as necessidades preconizadas para os lactentes. O mesmo deve ser observado nas crianças maiores, quando o inquérito alimentar apontar ingestão inadequada de micronutrientes.

Os pediatras, particularmente, devem estar atentos a respeito das controvérsias e dos benefícios relacionados ao consumo de produtos derivados do leite, bem como das fórmulas infantis à base de leite de vaca. A dieta dos lactentes e de crianças pequenas é baseada na ingestão de leite, e a restrição de seu consumo pode acarretar efeitos negativos no crescimento, uma vez que o leite é uma importante fonte alimentar protéica.

Além disso, outros efeitos negativos podem ocorrer especialmente com relação à ingestão de cálcio e vitamina D para lactentes, crianças e adolescentes4.

Definição

A intolerância à lactose é uma síndrome clínica composta por um ou mais dos seguintes sintomas: dor abdominal, diarréia, náusea, flatulência e/ou distensão abdominal após a ingestão de lactose ou de produtos alimentícios contendo lactose. A quantidade de lactose necessária para desencadear os sintomas varia de indivíduo para indivíduo, dependendo da porção de lactose ingerida, do grau de deficiência de lactase e do tipo de alimento com o qual a lactose foi ingerida4.

É causada pela deficiência ou ausência da lactase, enzima produzida pelas células da mucosa do intestino delgado. A lactase é a enzima responsável por hidrolisar a lactose em moléculas de monossacarídeos glicose e galactose, que são então absorvidas para a corrente sangüínea. Nem todas as pessoas que têm deficiência de lactase apresentam sintomas clínicos, porém as que apresentam são chamadas de intolerantes à lactose5,6.

Má absorção de lactose é a conseqüência da deficiência de lactase ou incapacidade do paciente de digerir apropriadamente a lactose, o principal açúcar do leite4. É detectada laboratorialmente, porém não necessariamente acompanhada de manifestações clínicas de intolerância à lactose1.

Fisiopatologia e manifestações clínicas

A lactose é um dissacarídeo composto por uma molécula de galactose ligada a uma molécula de glicose. Ocorre naturalmente e exclusivamente no leite dos mamíferos. Sua absorção ocorre na borda em escova da mucosa do intestino delgado, através da ação da enzima lactase, que tem a função de hidrolisar a ligação entre as moléculas de glicose e galactose, uma vez que o ser humano não é capaz de absorver carboidratos que não se apresentem na forma de monossacarídeos. Esta enzima fica localizada na extremidade das vilosidades da mucosa intestinal, fato que tem importância clínica, quando se considera o efeito da doença diarréica na habilidade individual de tolerar o leite da dieta4.

As reações adversas não tóxicas ao leite podem ser conseqüentes ao seu conteúdo de lactose ou ao seu conteúdo protéico. Estas duas situações são completamente diferentes, pois na alergia desencadeada pela proteína do leite de vaca há envolvimento de resposta imunológica, causando lesões variáveis no trato gastrointestinal, sendo geralmente limitada aos primeiros anos de vida.

Suas manifestações clínicas relacionadas ao trato digestivo são muito semelhantes às da intolerância à lactose, o que pode facilmente confundir o diagnóstico. A alergia à proteína do leite de vaca, porém, pode apresentar-se também com lesões cutâneas (eczema atópico) e também com sintomas respiratórios, o que não ocorre na intolerância à lactose.
A intolerância à lactose, por sua vez, é puramente um problema de digestão e absorção, não havendo nenhum mecanismo imunológico envolvido na sua fisiopatologia, e é muito mais freqüente acometer adultos que crianças. Sua evolução pode ser transitória ou definitiva1. O resumo das características que distinguem estes dois quadros está descrito na Tabela 1.

Em indivíduos suscetíveis a ingestão de lactose pode causar sintomas variados, como diarréia, distensão abdominal, cólicas, náuseas e flatulência, que podem aparecer minutos ou horas após a ingestão do leite. Estes sintomas podem apresentar intensidades variáveis, dependendo da quantidade de lactose ingerida e do grau de deficiência de lactase, que varia individualmente5.

Os carboidratos que não podem ser hidrolisados na luz intestinal a monossacarídeos para serem absorvidos, como normalmente é o caso dos oligossacarídeos do leite materno, das fibras alimentares e dos frutoligossacarídeos, atingem o cólon na qual sofrem fermentação através da ação da flora bacteriana e produzirão efeitos desejáveis, como a proteção da mucosa local e a melhora do ritmo intestinal.

Quando a enzima lactase não é suficiente para hidrolisar as moléculas de lactose que chegam à luz do intestino delgado, esta não será absorvida e alcançará o cólon, no qual o seu efeito osmótico direcionará a água para a luz intestinal, diminuindo a consistência das fezes, aumentando o peristaltismo e acelerando o trânsito intestinal4, levando ao aparecimento de náusea, cólica e diarréia5. A lactose presente no cólon também sofre fermentação pela flora bacteriana, aumentando a produção de gases e causando distensão abdominal, cólica e flatulência4.



Classificação

Deficiência ontogenética de lactase ou hipolactasia primária do adulto
A atividade da lactase está presente em todos os filhotes de mamíferos e diminui acentuadamente na época do desmame, desaparecendo até a idade adulta. Nos seres humanos este fenômeno não ocorre da mesma forma, pois certos grupos étnicos (caucasianos, p.ex.) mantêm 90% da atividade da enzima na vida adulta, enquanto que outras etnias (esquimós, judeus, orientais, indianos, negros) perdem progressivamente a atividade enzimática até os cinco anos de idade. Estas populações, porém, não manifestam sintomas de intolerância à lactose por não consumirem leite habitualmente após o desmame, exceto no caso de imigrações e aquisição de outro padrão alimentar.

Sua prevalência pode variar de 10% a 90%, dependendo da etnia considerada7. Postula-se que esta variação na prevalência seja decorrente da seleção natural ocorrida em povos criadores de gado leiteiro domesticado, consumidores de leite e seus derivados na dieta, com a aquisição de um traço genético dominante que perpetua a atividade da lactase após o desmame, selecionando indivíduos geneticamente habilitados a digerir a lactose. Nestes casos, ocorre a persistência de um “gene regulador”, recentemente seqüenciado e localizado no cromossomo dois, que não permite a supressão da síntese de lactase no tempo programado7.

O normal seria, portanto, que todos desenvolvessem deficiência de lactase e o anormal seria a persistência da atividade desta enzima. A OMS tem recomendado que não se utilize o termo “deficiência” de lactase, mas sim o termo “não persistência primária de lactase”, já que não pode ser considerada uma anomalia, mas uma diminuição ontogênica fisiológica da lactase após o desmame. Isso fica difícil de colocar em prática, já que o aparecimento de sintomas clínicos sempre irá sugerir a ocorrência de algo anormal7.

A idade de manifestação clínica também varia entre as diversas populações. Cerca de 20% das crianças hispânicas, asiáticas e negras, com idade menor de cinco anos, têm evidência clínica de intolerância à lactose, enquanto que crianças brancas tipicamente não desenvolvem sintomas até a idade de quatro ou cinco anos. A relevância desta observação é que ela, nas crianças com sinais clínicos de intolerância à lactose em idade anterior ao esperado para determinado grupo étnico específico, sugere a necessidade de uma avaliação para descartar outras causas subjacentes que expliquem o quadro clínico, já que esta não seria a apresentação habitual de uma deficiência ontogenética de lactase4.

Geralmente tem início insidioso e progressivo, porém esporadicamente pode apresentar-se de maneira súbita. A maioria dos casos desenvolve os sintomas no final da adolescência e na vida adulta. O fato da apresentação clínica variar individualmente, dependendo da quantidade de lactose ingerida e do grau de deficiência de lactase, faz com que o recordatório alimentar seja uma ferramenta fundamental para confirmar ou mesmo excluir o diagnóstico de intolerância à lactose4.

Deficiência secundária de lactase
Implica na existência de uma condição fisiopatológica subjacente, responsável pela deficiência de lactase e pela conseqüente má absorção de lactose. As etiologias incluem infecções agudas (rotavírus é o agente mais freqüente), parasitoses (giardíase, criptosporidiose), infecções crônicas (HIV), doença celíaca, doença de Crohn, desnutrição energético-protéica, ou seja, toda patologia que leva à lesão da mucosa do intestino delgado.

Cirurgias de ressecção intestinal também podem evoluir com deficiência de lactase no pós-operatório. Ocorre perda das células epiteliais, que são as células que contêm lactase, e as células imaturas que as substituem, são deficientes desta enzima4. Isto causa uma deficiência secundária de lactase, que pode ser completamente reversível quando estabelecido o tratamento para a doença de base e recuperada a lesão da mucosa, não necessitando, obrigatoriamente, de restrição dietética da ingestão de leite e seus derivados1.

A maioria das crianças que apresentam gastroenterocolite aguda não evolui com intolerância à lactose significante, e observa-se que, mesmo aquelas que apresentam certo grau de desidratação, podem receber leite materno e/ou fórmula infantil à base de leite de vaca, sem modificações na evolução e na resolução do quadro. Nos lactentes jovens (menores de três meses de idade) e nas crianças desnutridas, porém, a intolerância secundária à lactose pode ser um fator determinante da evolução da doença, com persistência do quadro de diarréia4. A avaliação diagnóstica destes pacientes deve ser direcionada de acordo com a suspeita clínica, em situações em que a causa infecciosa foi afastada.

Deficiência neonatal de lactase
A ação das dissacaridases no trato gastrointestinal costuma ser deficiente até a 34ª semana de gestação. Apesar deste fato, os recém-nascidos pré-termo geralmente não apresentam quadro clínico compatível com intolerância à lactose, podendo receber fórmulas infantis à base de leite de vaca próprias para prematuros sem apresentar efeitos deletérios na sua evolução.

A lactose não digerida é fermentada no cólon pela flora bacteriana, o que causa diminuição do pH fecal. O pH ácido favorece a proliferação de bactérias não patogênicas, proporcionando certa proteção contra infecções. Por outro lado, o uso de antimicrobianos nestes pacientes pode afetar a colonização bacteriana do cólon4.

Deficiência congênita de lactase
Doença genética extremamente rara, em que não existe a produção de lactase na mucosa intestinal3. Era doença fatal até algumas décadas atrás, quando não haviam produtos formulados sem lactose para a alimentação de recém-nascidos.

São descritos dois tipos clínicos:

· Alactasia congênita, que se manifesta com o aparecimento de diarréia ácida, desidratação e acidose metabólica desde os primeiros dias de vida, logo após a introdução de alimentação com leite, seja ele materno ou não;
· Intolerância congênita à lactose, com quadro clínico semelhante ao da alactasia congênita, acompanhado de lactosúria, aminoacidúria e acidose renal, com predomínio de vômitos. Neste segundo tipo, os sintomas desaparecem com a infusão da lactose no duodeno, através do uso de sonda pós-pilórica, sugerindo alguma alteração na permeabilidade gástrica7.

Caso não seja rapidamente identificada e controlada com a utilização de fórmula infantil isenta de lactose, pode levar à morte, devido à ocorrência de desidratação e distúrbios hidroeletrolíticos graves4.

Diagnóstico

A anamnese e avaliação clínica detalhadas geralmente conseguem relacionar o aparecimento de sintomatologia com a ingestão de lactose. Uma vez estabelecida a suspeita clínica, pode-se tentar comprovar o diagnóstico com teste terapêutico, introduzindo uma dieta isenta de lactose. Neste caso, devem-se eliminar todas as fontes alimentares de lactose, sendo necessário ler o rótulo de todos os produtos consumidos, a fim de identificar alimentos com lactose “oculta”. A dieta deve ser mantida por pelo menos duas semanas, com resolução total da sintomatologia. Então, novamente, introduzem-se na dieta os alimentos que contêm lactose. Caso haja recorrência da sintomatologia, o diagnóstico é confirmado4.

O fato da lactose não digerida ser fermentada no cólon pode ser detectado através da análise do pH fecal, que deve estar ácido5 (abaixo de 6,0) e da presença de substâncias redutoras nas fezes acima de 0,50%. O pH fecal é o primeiro a se alterar, sendo mais sensível que a presença de substâncias redutoras nas fezes4. Estes testes são inespecíficos, porém sugestivos da presença de má-absorção de carboidratos. Em algumas situações podem ser úteis e auxiliar no diagnóstico de intolerância à lactose7.

Casos em que a sintomatologia não é tão evidente podem se beneficiar de um teste do hidrogênio expirado. Atualmente este é o recurso diagnóstico de primeira escolha, pois é o menos invasivo de todos, e também o mais sensível para diagnosticar má absorção de lactose. Consegue ser mais sensível do que a história clínica, pois mesmo pacientes sem sintomas clínicos têm o teste positivo (mau absorvedores de lactose), enquanto que outros com sintomas importantes podem ter o teste negativo4. O teste consiste na administração em jejum de uma dose padronizada de lactose (2 g/kg até um máximo de 25 g), equivalente à ingestão de dois copos de leite de vaca. Mede-se a quantidade de hidrogênio do ar expirado, durante um período de duas a três horas. O aumento maior que 20 ppm de hidrogênio expirado após 60 minutos indica má absorção de lactose4,7.

Alguns fatores podem interferir na eliminação do hidrogênio pelo ar expirado, gerando resultados falso-positivo ou falso-negativo, por isso um gastroenterologista deve ser consultado para interpretar os resultados4,5. Dentre estes fatores, inclui-se o uso recente de antimicrobianos (altera a flora bacteriana intestinal), ausência de flora bacteriana não fermentativa (ocorre em 10% a 15% da população), supercrescimento bacteriano no intestino delgado, alterações de motilidade intestinal, ingestão de dieta com alto teor de fibras previamente à realização do teste4.

Anteriormente ao desenvolvimento do teste do hidrogênio expirado, indicava-se o teste oral de tolerância à lactose como a primeira escolha para o seu diagnóstico. Consiste na administração de uma dose padronizada de lactose por via oral de 2 g/kg ou 50 g/m2 de superfície corpórea4, com dose máxima de 50 g diluída a 20% em água. A coleta de sangue para dosagem da glicose sangüínea é realizada antes da administração da lactose e repetida após 15, 30, 45 e 60 minutos depois de ingerida a dose. O diagnóstico é dado pelo aparecimento de sintomas e/ou elevação menor que 20 mg/dL na glicose sangüínea.

Quando este teste é associado à análise do pH fecal e da presença de substâncias redutoras nas fezes antes e até 48 horas após a realização do teste, diminui sensivelmente a possibilidade de ocorrência de resultado falso-positivo. Sintomas e sinais clínicos podem ocorrer até 48 horas após a realização do teste, indicando-o como positivo7.

A biópsia intestinal permite a dosagem da atividade enzimática na mucosa. Sua realização, porém, é justificada apenas quando houver suspeita de deficiência secundária de lactase, para descartar doença subjacente. É importante ressaltar que as concentrações intestinais de lactase não necessariamente apresentam boa correlação com os sintomas de intolerância à lactose4.

Atualmente já é possível estudar a genotipagem destes pacientes, que é um método econômico, rápido e conveniente para o diagnóstico de má absorção de lactose8.

Tratamento

O tratamento da intolerância à lactose deve ser instituído quando o diagnóstico foi bem estabelecido, uma vez que mudanças na ingestão de leite e derivados na dieta de crianças pequenas podem resultar em carências nutricionais que poderão perpetuar-se por toda a vida.

As crianças pequenas e os lactentes com deficiência de lactase não devem ingerir fórmulas infantis ou alimentos contendo lactose, até que se tornem capazes de tolerar e digerir a lactose. A restrição parcial ou total da ingestão de leite e seus derivados é suficiente para controlar os sintomas. Alguns pacientes podem tolerar determinada quantidade de leite, especialmente se a sua ingestão for fracionada em porções menores ao longo do dia. Crianças maiores e adultos, geralmente, não precisam evitar totalmente a ingestão de lactose, porém esta é uma questão absolutamente individual5.

É necessário que os pacientes e familiares sejam alertados que, mesmo apresentando sintomas, a ingestão ocasional de lactose não causa lesão no trato gastrointestinal, como acontece em outras patologias como a alergia à proteína do leite de vaca, por exemplo4.


São várias as opções para substituição do leite de vaca para a alimentação do lactente. Infelizmente, a maioria delas é totalmente inadequada para as necessidades nutricionais desta faixa etária. Nos lactentes intolerantes à lactose, nenhum outro leite de mamíferos pode substituir o leite de vaca, pois todos contêm lactose. Em nosso meio, o mais comum é o leite de cabra, que estaria contra-indicado como substituto. Outros “leites” à base de arroz ou soja são isentos de lactose, porém seu conteúdo nutricional não é equivalente ao do leite de vaca a ponto de poderem substituí-lo4.

Fórmulas infantis à base de leite de vaca, isentas de lactose, estão disponíveis no mercado e são a melhor escolha para substituir, quando necessário, o leite materno e/ou a fórmula infantil à base de leite de vaca para aquelas crianças intolerantes à lactose. As fórmulas infantis à base de proteína isolada de soja também são uma opção, uma vez que são adequadas às necessidades do lactente e não contêm lactose na sua composição. Nos casos de intolerância à lactose secundários às gastroenterocolites agudas, não há indicação de substituição do leite habitualmente utilizado, exceto em casos de crianças desnutridas4.

Aqueles pacientes portadores de doenças inflamatórias do trato gastrointestinal, como a doença de Crohn e a retocolite ulcerativa, costumam tolerar alimentos contendo lactose, e a prevalência de intolerância à lactose nestes pacientes não parece ser diferente da população em geral4.

Atualmente, uma grande variedade de leites com teor reduzido de lactose, assim como outros alimentos industrializados estão disponíveis nos supermercados. Estes produtos devem ser consumidos por crianças maiores de dois anos de idade4. Apesar do leite com baixo teor de lactose ser mais caro que o leite integral, ainda assim o preço é acessível para a maioria dos pacientes.

Queijos e iogurte também são uma opção. O iogurte em especial, apesar de seu alto teor de lactose, pode ser bem tolerado pelos pacientes intolerantes à lactose por que as bactérias nele presentes são capazes de digerir a lactose antes do seu consumo. Além disso, o iogurte costuma diminuir a velocidade do esvaziamento gástrico e do trânsito intestinal, diminuindo os sintomas de intolerância à lactose4.

Os pacientes devem ser orientados a ler os rótulos das embalagens dos produtos que irão consumir, para verificar a presença de leite e lactose em sua composição. A Tabela 2 apresenta uma lista resumida de alimentos que contêm ou não lactose.

Para aqueles pacientes intolerantes a pequenas quantidades de lactose, ou mesmo aqueles que não conseguem reduzir a sua ingestão, existe a possibilidade da reposição enzimática4,5. A lactase, sob a forma de comprimido ou líquido, deve ser administrada juntamente com os alimentos que contêm a lactose. Nos EUA estão disponíveis e não necessitam de prescrição médica para sua aquisição5.

Discussão

Estudos realizados com populações em geral demonstram que a freqüência de intolerância à lactose é muito menor que a de deficiência de lactase, pois os sintomas gastrointestinais após teste de sobrecarga de lactose em pacientes que se autodenominavam como intolerantes ao leite foram confirmados em apenas um pequeno número de indivíduos. Entretanto, estes pacientes promoviam uma diminuição voluntária da ingestão de leite, refletindo numa ingestão de cálcio insuficiente9.

Além da clara diminuição da oferta de cálcio na dieta dos pacientes que fazem restrição da ingestão do leite de vaca4,6, outra questão preocupante é o fato de que há evidências de que a lactose favorece a absorção do cálcio. Dietas com restrição de leite e derivados poderiam, portanto, diminuir a sua absorção, potencializando o efeito negativo sobre a ingestão deste micronutriente4,9,10.

Teoricamente, os pacientes com intolerância à lactose submetidos ao tratamento dietético por período prolongado estão, portanto, mais predispostos a desenvolverem uma mineralização óssea inadequada. Este grupo de pacientes, potencialmente em risco de desenvolver uma mineralização óssea inadequada deve ser monitorizado do ponto de vista da densitometria óssea. Isto é mais preocupante em relação aos pacientes pediátricos, pois é sabido que 80% da massa óssea é adquirida do nascimento à adolescência11.

A osteoporose é a principal alteração relacionada à ingestão inadequada de cálcio, e é responsável por mais de 1,5 milhão de fraturas anualmente. As recomendações de ingestão diária de cálcio são de 1.000 mg para homens e mulheres e 1.300 mg para adolescentes12. A Tabela 3 descreve as recomendações preconizadas para a ingestão diária de cálcio nas diferentes faixas etárias.



O equilíbrio do metabolismo do cálcio depende de fatores como a ingestão protéica, disponibilidade da vitamina D, ingestão de sal e fatores genéticos4. Oferecer a orientação de uma dieta adequada, com a prescrição de suplementação mineral quando for necessária, pode prevenir o balanço negativo de cálcio, favorecendo a preservação da massa óssea dos pacientes com intolerância à lactose8,11.

Uma vez indicado o tratamento dietético para os pacientes portadores de intolerância à lactose, a atenção do médico deve concentrar-se na adequação da dieta para que esta atinja as necessidades recomendadas para a idade do paciente, já que outros alimentos deverão suprir o aporte de proteínas, cálcio e vitamina D, cuja fonte alimentar principal para as crianças é o leite de vaca.

Aqui deve ser destacado o papel do nutricionista, que é o profissional habilitado para analisar e adequar a ingestão destes pacientes, otimizando a disponibilidade de macro e micronutrientes necessários para a manutenção do crescimento e da boa saúde dos pacientes.

No caso dos lactentes em uso de fórmulas infantis isentas de lactose (à base de leite de vaca ou proteína isolada de soja), em geral, não há necessidade de receber suplementação oral de cálcio, pois as fórmulas são elaboradas de modo a atingir as necessidades recomendadas destes micronutrientes para esta faixa etária. Cerca de 60% das recomendações diárias de cálcio são obtidos através do consumo de leite de vaca e seus derivados11, e, por isso, fica mais difícil suprir o aporte de cálcio com outras fontes alimentares, do que suprir o aporte de proteínas e vitamina D.

Baseada nesta afirmação, a suplementação de cálcio deve sempre ser analisada quando houver a necessidade de restringir, parcial ou totalmente, a ingestão de leite. Entretanto, é possível planejar uma dieta isenta ou com baixo teor de lactose, que atinja as necessidades diárias preconizadas para a ingestão de cálcio, proteínas e vitamina D, tanto para crianças em fase de crescimento quanto para mulheres adultas com risco para osteoporose, desde que os alimentos ricos nestes nutrientes, que não o leite e seus derivados, como vegetais, peixes e outros alimentos enriquecidos, sejam consumidos com maior freqüência e em quantidades maiores do que o habitual5.

No caso de pacientes cuja orientação dietética não seja suficiente para suprir as necessidades diárias, muitas vezes por dificuldade de aceitação dos alimentos permitidos, e de acordo com a avaliação do médico e do nutricionista, está indicada a prescrição de suplementação de cálcio, de maneira a encontrar os níveis recomendados para a faixa etária do paciente, prevenindo a perda da massa óssea4,8,10-12.

O diagnóstico cuidadoso é fundamental para que não sejam adquiridas condutas restritivas desnecessárias com relação à ingestão do leite de vaca, especialmente na dieta de crianças e adolescentes, uma vez que este alimento é uma fonte importante de nutrientes diretamente envolvidos no processo de crescimento. A ingestão adequada de cálcio durante a infância e adolescência é a forma principal de prevenção da osteoporose no adulto10,11.

Assim, a restrição dietética de leite e seus derivados pode acarretar alterações que poderão persistir e se manifestar na vida adulta, quando não houver uma indicação bem estabelecida, seguida de uma avaliação e orientação individual, adequada para as necessidades de cada paciente.




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