Numeração de páginas na revista impressa: 127 à 133
INTRODUÇÃO
A glândula tireóide, através de seus hormônios secretados, produz os mais diversos efeitos nos sistemas e órgãos do corpo. O coração e o sistema cardiovascular são, sem dúvida, alguns dos mais afetados pela ação do hormônio tireoidiano, a triiodotironina (T3)(1). O T3 influencia tanto a função miocárdica quanto a atividade do sistema vascular periférico, induzindo a resposta de ambos às situações de normalidades, ou mesmo a reações diferentes às doenças que possam advir ao longo da vida. Outrossim, podemos encontrar influência da função tireoidiana em estágios avançados de doenças cardíacas já estabelecidas, provocando piora ou perpetuação do quadro(1).
Assim, o objetivo desta revisão é vislumbrar os aspectos clínicos e fisiopatológicos envolvidos na influência que a tireóide exerce no desenvolvimento de doenças cardíacas, bem como as possibilidades de tratamento específico para tal condição.
MECANISMO MOLECULAR DA AÇÃO DO T3 NO MIOCÁRDIO
O hormônio triiodotironina (T3) é de extrema relevância no funcionamento do cardiomiócito. Não obstante, sua ação não se faz de forma direta, mas, como em várias outras células da economia, faz-se necessária a ligação do hormônio a receptores específicos localizados na membrana do cardiomiócito(2). Uma vez dentro da célula muscular cardíaca, o T3 entra no núcleo e se liga ao DNA na forma de dímeros de variados tipos. Um destes é um heterodímero composto por outro receptor hormonal do tipo esteróide, deflagrando, assim, a ativação de transcrição gênica em caráter otimizado de diversas proteínas, as quais influenciam o funcionamento do miócito no coração(3). Na ausência de T3, os receptores do hormônio são reprimidos, pois são regulados pelo próprio T3 na forma de feedback positivo(1).
Os genes ativados pelo T3 codificam a produção de proteínas cardíacas estruturais e funcionais. Em indivíduos saudáveis, entretanto, as modificações estruturais induzidas pelo T3 pouco interferem na contratilidade cardíaca, apesar de provocar mudanças na produção da cadeia pesada da beta-mioglobina, presente de forma predominante no miocárdio adulto normal(1). A ação do hormônio se torna mais significativa em pacientes portadores de insuficiência cardíaca em concomitância com hipotireoidismo. Em tais casos, a reposição do hormônio tireoidiano provoca um aumento da ordem de 11 vezes na presença da cadeia pesada do tipo alfa-mioglobina, melhorando a contratilidade miocárdica(3).
Por outro lado, sob aspectos bioquímicos e funcionais, a influência que o T3 exerce é de suma importância para a fisiologia da contratilidade cardíaca e manutenção dos parâmetros hemodinâmicos. Assim, dentre outras funções, o T3 é responsável, através da transcrição gênica já comentada, pela produção da enzima ATP-ase cálcio ativada, presente no retículo sarcoplasmático (Ca2+-ATP-ase), bem como da cadeia fosfolamban(1). Como já se tem conhecimento, tanto a liberação como a reentrada do cálcio no retículo sarcoplasmático são essenciais para o desempenho da função sistólica e diastólica do coração. A cadeia fosfolamban, por sua vez, é a responsável pelo transporte ativo do cálcio para o interior do retículo sarcoplasmático(4). Outrossim, pequenas variações da concentração de tais proteínas são suficientes para alterar a função miocárdica.
Embora seja bem conhecida a influência que a tireóide exerce sobre a atividade adrenérgica, não se compreende totalmente o mecanismo através do qual essa influência é exercida. Em indivíduos com aumento dos níveis do T3, apesar dos níveis normais circulantes de catecolaminas, existe uma resposta adrenérgica exacerbada, expressa clinicamente pelo aumento do débito cardíaco, com elevação da freqüência cardíaca e pressão de pulso aumentada, sugerindo que a atividade do T3 se direciona primordialmente para a sensibilização do coração às catecolaminas(5).
O ponto fundamental parece estar relacionado aos receptores adrenérgicos do tipo beta (b-RA). Os principais receptores b-RA presentes no coração consistem nos subtipos b1-RA e b2-RA. Tais receptores interagem com a enzima adenil-ciclase-heterotrimérica estimuladora da proteína G (GS) que, por sua vez, ativa a via clássica do AMP cíclico (AMPc). Porém, enquanto o b1-RA ativa apenas a via de estimulação adrenérgica, o receptor b2-RA ativa a enzima GI – a adenil-ciclase inibidora da proteína G(6) (Figura 1).
Entretanto, a ação da triiodotironina no miocárdio dependerá, não somente do equilíbrio entre a sensibilização dos receptores b-RA, mas também de outras proteínas e receptores participantes do sistema adrenérgico, como a adenil-ciclase V e VI, diversas bombas de Na+/K+ ATP-ase, bem como canais de potássio transmembrana voltagem-dependente – Kv1.5, Kv4.2, e Kv4.3. Todos os componentes são regulados através da transcrição gênica realizada a partir da ação nuclear do T3(1) (Figura 1).
Quando atua em nível de tais estruturas, o T3 atua em âmbito extranuclear. Tal evento provoca mudanças no funcionamento de diversos canais de sódio, potássio e cálcio, interferindo diretamente na concentração desses íons no espaço intracelular do cardiomiócito. Por sua vez, tais mudanças de concentração provocam alterações diretas no cronotropismo e inotropismo cardíaco(6) (Tabela 1).
ATIVIDADE DO T3 EM NÍVEL VASCULAR
O hormônio T3 age no sistema circulatório provocando diminuição da resistência vascular periférica (RVP). Alguns autores advogam a hipótese do aumento da atividade metabólica e consumo de oxigênio, que levaria à liberação de vasodilatadores locais(7). Como conseqüência, há queda do volume de enchimento arterial, causando aumento na liberação de renina e ativação do eixo angiotensina-aldosterona(1). Há, portanto, maior reabsorção de sódio no rim, levando ao aumento do volume plasmático. Paralelamente, o hormônio tireoidiano estimula a produção de eritropoietina, também contribuindo para o incremento do volume sangüíneo circulante (Figura 2). Finalmente, essa cascata de eventos resulta em maior pré-carga por maior volume de sangue, aumentando, assim, o débito cardíaco(8). Ainda, é fato que a diminuição do T3 circulante promove alterações diametralmente opostas as acima descritas, com queda no débito cardíaco e incremento da RVP, devido a alterações endoteliais e de relaxamento da musculatura lisa da macro e microcirculação arterial(9).
De fato, já é bem estabelecida a relação entre alterações hemodinâmicas e mudanças na expressão de proteínas estruturais e reguladoras no miócito cardíaco. Em sua maioria, tais proteínas são as mesmas reguladas pelo T3 e, portanto, têm sua expressão alterada em situações como insuficiência cardíaca e hipertrofia miocárdica. Estudos têm mostrado que nos casos de insuficiência ventricular avançada, a melhora do funcionamento cardíaco através de procedimentos invasivos, como dispositivos de assistência ventricular, promove modificações da expressão gênica dos cardiomiócitos, tornando-os mais responsivos ao T3, o qual, através desse mecanismo, ajudaria na melhora dos parâmetros hemodinâmicos(10-12).
Figura 1 – Sítios de ação da triiodotironina (Fonte: modificado de Klein, I. & Ojamaa, K. Thyroid hormone and the cardiovascular system(1)).
DOENÇAS CARDÍACAS
1. Arritmias As alterações do ritmo cardíaco, ou arritmias, associadas com o hormônio tireoidiano podem seguir sentidos opostos, de acordo com o excesso ou diminuição do T3 circulante. Portanto, tanto o hipo quanto o hipertireoidismo terão interferência não só na freqüência cardíaca, mas também no surgimento de disritmias cardíacas, com implicações na morbimortalidade.
Nos casos de indivíduos em estados de hipertireoidismo, as alterações de ritmo cardíaco são secundárias ao aumento do tônus simpático, mas também à inibição do tônus parassimpático(13). A taquicardia sinusal com freqüência cardíaca acima de 90 batimentos por minuto durante o sono e elevações exageradas da mesma em resposta ao exercício é o mais comum distúrbio do ritmo associado ao hipertireoidismo(1). É caracterizada pela combinação entre uma despolarização diastólica mais rápida e encurtamento do potencial de ação das células sinoatriais(14). Entretanto, as complicações clínicas decorrentes da taquicardia sinusal são de pouca importância e mais relacionadas a indivíduos de idade avançada. Outrossim, também estão presentes extra-sístoles atriais precoces, taquicardia atrial paroxística, flutter e fibrilação atriais(15).
Figura 2 – Efeitos do hormônio tireoideano na hemodinâmica cardiovascular (Fonte: adaptado de Klein, I. & Ojamaa, K. Thyroid hormone and the cardiovascular system(1)).
Figura 3 – Distribuição da idade de pacientes com hipertireoidismo (n=18.514) e fibrilação atrial (n=245) (Fonte: Modificado de Shimizu T, Koide S, Noh J. Y, Sugino K, Ito K, Nakazawa H. Hyperthyroidism and the management of atrial fibrilation)(16).
Não obstante, a fibrilação atrial (FA) está presente em 5% a 20% dos pacientes portadores de hipertireoidismo, sendo mais prevalente em homens, com pico de incidência na segunda década de vida, diminuindo gradualmente a ocorrência com o progredir da idade, de acordo com estudos realizados há aproximadamente 40 anos(16) (Figura 3). Atualmente, tem se admitido que esta incidência diminuiu devido ao diagnóstico mais precoce e controle mais preciso do hipertireoidismo. É a arritmia mais relacionada com complicações cardiovasculares do hipertireoidismo(1).
A fibrilação atrial pode ser deflagrada por uma ou mais extra-sístoles atriais precoces, sobretudo as originadas nas veias pulmonares(17), as quais são mais relacionadas aos quadros de tireotoxicose(17,18). De acordo com dados obtidos em estudos com animais, o substrato para a perpetuação da FA persiste mesmo após o restabelecimento do estado bioquímico de eutireoidismo, decorrente do remodelamento elétrico do miocárdio, em especial do átrio(19). Embora sua incidência seja mais acentuada em indivíduos de menor faixa etária(16,17), é em pacientes mais idosos que sua repercussão clínica se torna mais evidente e agressiva(1,16,17). Em gerontes, apesar de um quadro frustro de hipertireoidismo, ou da forma apatética, a FA pode ser a manifestação clínica da doença a deflagrar uma investigação diagnóstica(20).
A maior implicação da FA no incremento da morbimortalidade relacionada a indivíduos de idade mais avançada, sob quadros de tireotoxicose, deve-se ao fato da incidência de comorbidades cardiovasculares ser mais freqüente nesta população(17). Existe uma clara tendência à ocorrência de fenômenos tromboembólicos em pacientes portadores de FA e comorbidades cardiovasculares como hipertensão, doença cardíaca reumática e miocardiopatia dilatada(15-17). Conforme a incidência de tais quadros seja menor em indivíduos mais jovens, a ocorrência de fenômenos de embolia decorrente da fibrilação atrial se torna menos importante, a ponto de estudos clínicos apontarem como desnecessária e danosa a anticoagulação destes indivíduos, uma vez que o surgimento de complicações hemorrágicas suplantaria a prevenção de tromboembolia oferecida pela anticoagulação crônica(16). Em geral, em pacientes mais idosos portadores de FA e tireotoxicose se recomenda a anticoagulação crônica, embora, mesmo neste grupo etário, não existam na literatura dados suficientes para o estabelecimento da relação risco-benefício para este tratamento(17).
Nos casos de fibrilação atrial secundária à tireotoxicose, a cardioversão como medida inicial deve ser evitada, haja vista que o estímulo à indução da FA se mantém e sua recorrência é comum. Nesta fase, o controle da freqüência cardíaca deve ser alcançado através de medicações como beta-bloqueadores ou bloqueadores de canais de cálcio(21).
O retorno ao estado de eutireoidismo destes pacientes remonta à melhora ou cessação dos quadros de arritmia(16,20). Em relação à FA, a reversão espontânea da arritmia ocorre 3 a 4 meses após o controle da tireotoxicose, mesmo na ausência de terapia antiarrítmica específica. Nos casos em que há persistência da FA, além desse período, é incomum o retorno ao ritmo sinusal sem cardioversão(16) (Figura 4).
Nos casos de hipotireoidismo, devido ao prolongamento do intervalo QT, há uma maior predisposição ao aparecimento de arritmias ventriculares, podendo, inclusive, evoluir raramente à torsade de pointes(22). Tais alterações podem ser explicadas pelo efeito do T3 na expressão de diversos canais de cálcio na célula muscular cardíaca(22). A terapia de reposição de T3 tende a anular tais alterações, associadas ao hipotireoidismo(1).
Figura 4 – Tempo de restauração espontânea do ritmo sinusal. A restauração do ritmo sinusal ocorreu em estágios muito precoces do controle da função tireoideana, mesmo quando a triiodotironina sérica livre e a tiroxina livre permaneceram elevadas (Fonte: Modificado de Shimizu T, Koide S, Noh J. Y, Sugino K, Ito K, Nakazawa H. Hyperthyroidism and the management of atrial fibrilation)(16).
2. Insuficiência cardíaca A insuficiência cardíaca (IC) pode estar relacionada tanto ao excesso quanto à falta do hormônio tireoidiano, marcadamente por mecanismos distintos. No paciente portador de hipertireoidismo, devido à ativação da síntese de proteínas sob ação do T3, bem como um maior trabalho cardíaco, desencadeado por uma situação hipermetabólica, observa-se hipertrofia ventricular(15). Entretanto, o surgimento da IC em tal condição tem mecanismos complexos. O aumento da freqüência cardíaca conduz à observação de níveis supranormais da fração de ejeção do ventrículo esquerdo (FEVE) ao repouso; e ao esforço, contudo, há decremento da FEVE e sintomas de dispnéia, fadiga e tosse(15). Tais eventos levam a um quadro conhecido por “cardiomiopatia do hipertireoidismo”(23). Um estudo, em que se avaliou a resposta ao exercício de pacientes com hipertireoidismo, sugere que a cardiomiopatia do hipertireoidismo é uma condição reversível caso haja correção dos níveis de T3(24).
Embora a condição dessa cardiomiopatia favoreça o aparecimento dos sintomas de IC, pacientes em estado tireotóxico podem desenvolver um quadro similar, sem a existência de alterações morfológicas cardíacas. Na verdade, o surgimento da síndrome de IC é secundário, na maioria das vezes, à IC induzida por taquicardia, quer seja sinusal ou pela presença de fibrilação atrial(13). Em outras circunstâncias, a dispnéia pode ser secundária à fraqueza dos músculos respiratórios(25), incremento do volume sangüíneo e dos níveis plasmáticos de sódio com aumento subseqüente do volume circulante, os quais associados ao menor tempo de diástole proporcionado pelo aumento da freqüência cardíaca sobrecarregam o ventrículo esquerdo, dando surgimento à IC de alto débito(23).
Por outro lado, a associação de hipertireoidismo com doenças cardíacas preexistentes pode desencadear quadros de IC. Assim, o aparecimento de dispnéia pode advir da simples inabilidade cardíaca para adaptação ao esforço devido à baixa reserva cardíaca. A presença de hipertensão arterial sistêmica (HAS), provocando aumento do trabalho cardíaco, e condições isquêmicas do coração influem, sobremaneira, na resposta cardíaca a situações de estresse, tendo impacto negativo na função miocárdica e sua reserva funcional em pacientes hipertireóideos(23).
Nos casos de hipotireoidismo o mecanismo para o surgimento da IC segue padrões diferentes e as mudanças hemodinâmicas são exatamente opostas às observadas no hipertireoidismo. Entretanto, os sintomas são menos evidentes e as conseqüências se tornam pronunciados apenas nos casos avançados e de longa duração da doença, sem que se tenha estabelecido tratamento apropriado ou em pacientes de idade mais avançada, nos quais a ocorrência de comorbidades preexistentes é mais freqüente(9). A bradicardia, observada nas situações de deficiência do T3, causa diminuição do débito cardíaco(1). O derrame pericárdico, presente nos pacientes mixedematosos, pode levar, nos casos avançados, à restrição do enchimento ventricular, culminando com tamponamento cardíaco e colapso circulatório. Devido ao funcionamento inadequado do transporte ativo de cálcio transmembrana, há o aparecimento, nos estados de hipotireoidismo, de disfunção diastólica do ventrículo esquerdo(9) (Figura 5).
Além da bradicardia, a presença da diminuição do enchimento ventricular, decremento da contratilidade cardíaca e diminuição da função diastólica, associada ao aumento da resistência vascular periférica – que pode sofrer um incremento da ordem de 50%, também agem negativamente no débito cardíaco(26) (Figura 5). No entanto, a IC verdadeira é rara nesses pacientes, uma vez que o débito cardíaco, mesmo em níveis débeis, mantém-se suficiente para suprir as necessidades de oxigênio dos tecidos que, por sua vez, encontram-se em estado de lentificação metabólica(1).
Em um estudo clínico, D’Mati e cols. estudaram corações transplantados de pacientes com IC. Observaram alterações na expressão de receptores nucleares do hormônio tireoidiano do tipo a1, a2 e b1, sugerindo tratar-se de uma reação compensatória, naqueles pacientes, diante da situação de estresse hemodinâmico presente na IC. Além disso, a expressão de tais receptores nucleares, segundo os autores, é similar àquela encontrada em condições de hipotireoidismo avançado, com manifestações cardiovasculares(7). Outrossim, outros estudos clínicos não controlados sugerem que a reposição de T3 em pacientes cursando com IC traria benefícios na função cardíaca e hemodinâmica, porém os dados ainda são conflitantes e insuficientes para conclusões definitivas(28).
Figura 5 – Papel da idade, hipertensão e hipotireoidismo como fatores no desenvolvimento da insuficiência cardíaca diastólica (Fonte: Thyroid hormone and cardiovascular system. Danzi,S & Klein, I.(9)).
3. Isquemia do miocárdio A isquemia do miocárdio (IM) pode ser relacionada a alterações dos níveis circulantes de T3. Entretanto, nos casos de hipertireoidismo, a precipitação da IM devido à coronariopatia preexistente é, habitualmente, esperada(1,5,29).
Por outro lado, em indivíduos hipotireóideos, trabalhos sugerem um processo de aterosclerose acelerada, provavelmente secundária à dislipidemia, que pode ocorrer nesses casos, e o desenvolvimento de HAS, que seria causada pelo aumento da resistência vascular periférica na condição de hipotireoidismo(1,30). Hak e cols. (The Rotterdam Study) analisaram a incidência de doença vascular em mulheres menopausadas e portadoras de hipotireoidismo subclínico. Observaram não só uma maior incidência de infarto do miocárdio, mas também uma freqüência maior de calcificação da aorta, quando comparado com a população em geral de faixa etária similar(31). Em estudo retrospectivo, Parle e cols. observaram que, em pacientes acima de 60 anos, com níveis séricos diminuídos de T3, havia maior mortalidade global, mas particularmente de causas cardiovasculares(32).
No entanto, evidências diretas de tais efeitos ainda são efêmeras e, haja vista o metabolismo lentificado dos indivíduos portadores de hipotireoidismo, as implicações clínicas no campo da IM são pouco pronunciadas(1,33).
4. Hipertensão arterial sistêmica Alterações do hormônio tireoidiano podem originar incrementos nos níveis tensionais. Nos casos de hipertireoidismo, a ocorrência de hipertensão arterial sistêmica (HAS) é rara, mas pode haver elevação da pressão arterial sistólica em indivíduos senis(34).
Particularmente, a HAS está associada com o hipotireoidismo. Hemodinamicamente, o débito cardíaco está reduzido, mas a RVP está elevada, provocando aumento do componente diastólico da pressão arterial(34). O T3, conforme já descrito, age na camada média arterial, provocando vasodilatação. Assim no hipotireoidismo, o aumento da RVP se deve tanto a uma vasodilatação deficiente, como também à maior concentração de noradrenalina circulante e menor número de receptores vasculares do tipo beta-adrenérgicos. Também se observou discreto aumento dos níveis de vasopressina circulante em pacientes hipotireóideos. O tratamento do distúrbio tireoidiano, usualmente, regride as alterações hemodinâmicas, com recuperação dos níveis tensionais prévios(34,35).
O HORMÔNIO TIREOIDIANO NA CIRURGIA CARDÍACA
O uso do T3 na cirurgia cardiovascular advém do fato de que há diminuição transitória da triiodotironina livre no pós-operatório imediato em pacientes adultos, submetidos a essa modalidade cirúrgica(33). Estudos clínicos não controlados sugerem benefícios com a reposição do T3 no período imediato à cirurgia, mas os dados são ainda conflitantes(1). Não obstante, na cirurgia cardíaca pediátrica há estudos randomizados que apontam para segurança e benefício da reposição do T3 nesse tipo de paciente(36,37). Em crianças que foram submetidas à correção cirúrgica de cardiopatia congênita os níveis de T3 estão diminuídos em torno de 60% dos pacientes(12) e com a reposição do T3, restabelecendo o estado de eutireoidismo após a cirurgia, houve um aumento superior a 20% no débito cardíaco e uma diminuição da resistência vascular periférica da ordem de 25%, em relação a crianças que foram submetidas à cirurgia, mas não receberam a reposição do T3(37).
CONCLUSÕES
As alterações cardiovasculares advindas de condições patológicas tireoidianas podem trazer graves conseqüências orgânicas a toda economia. Marcadamente, a influência que o T3 exerce no núcleo do miócito cardíaco favorece o surgimento das mais diversas alterações cardíacas, com aumento na morbimortalidade.
Assim, as manifestações clínicas de hiper ou hipotireoidismo são acompanhadas de alterações estruturais cardíacas, além de influência na resistência vascular periférica, ampliando as conseqüências cardíacas da atividade do T3. A aplicação do hormônio tireoidiano em condições patológicas previamente estabelecidas, como a IC e no pós-operatório de cirurgia cardíaca, ainda não tem benefício comprovado, carecendo de estudos controlados e de casuística significativa.
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