Revistas Fase R003 Id Materia 3205






Revisão
Por que precisamos de novas modalidades terapêuticas no glaucoma?
Vital P. Costa
Diretor do Serviço de Glaucoma da Unicamp. Professor livre-docente pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Palestra proferida no Simpósio Internacional de Glaucoma em Praga, República Tcheca, no dia 22 de março de 2001.

Numeração de páginas na revista impressa: 28 à 30

O tratamento e o conceito de glaucoma vem modificando-se ao longo do tempo. O termo glaucoma se refere a uma doença caracterizada por neuropatia óptica progressiva associada a perda gradual do campo visual. A elevação da pressão intra-ocular, antes parte da definição de glaucoma, é hoje reconhecida como o principal fator de risco para o desenvolvimento da moléstia. Tempos atrás, epinefrina, pilocarpina, beta-bloqueadores e inibidores sistêmicos da anidrase carbônica eram as únicas drogas disponíveis para o tratamento do glaucoma. Apesar da mudança de conceito e no desenvolvimento de novas drogas antiglaucomatosas, a redução da pressão intra-ocular permanece como o “mainstream” da terapêutica antiglaucoma. Obviamente, há um vazio a ser preenchido entre a evolução do conceito e a evolução do tratamento.

São muitas as evidências sugerindo que a redução da pressão intra-ocular não é suficiente para controlar todos os pacientes com glaucoma. Dentre vários estudos na literatura, selecionei alguns que claramente demonstram este conceito. Estima-se que 68 milhões de pessoas apresentam glaucoma no mundo e que, destes, 7 milhões apresentam cegueira bilateral. Será isto conseqüência exclusiva da dificuldade de acesso do paciente ao tratamento? Em um estudo retrospectivo, Hattenhauer et al.(1) avaliaram 295 pacientes recém-diagnosticados com glaucoma entre 1965 e 1980 e seguidos por um intervalo médio de 15 anos. Pacientes com glaucoma primário de ângulo aberto apresentaram um risco de 9% de cegueira bilateral e 26% de cegueira unilateral após 20 anos, apesar de tratados. Pode-se argumentar que o número de medicações disponíveis àquela época era reduzido, ou que não se descreveu a gravidade do glaucoma no momento do início do estudo ou, ainda, que a pressão intra-ocular destes pacientes não foi mencionada, mas, ainda assim, o risco estimado de cegueira após 20 anos é impressionante e preocupa todos que se dedicam ao tratamento do glaucoma. Nós decidimos avaliar o nosso grupo de pacientes com glaucoma na Universidade de Campinas, num ambiente inteiramente diverso num país em desenvolvimento e realizamos dois estudos retrospectivos. No primeiro, observamos que 33% dos pacientes que visitaram o Setor de Glaucoma pela primeira vez estavam bilateralmente cegos(2). O segundo estudo (3) demonstrou que o risco estimado de cegueira em pelo menos um dos olhos para pacientes seguidos por uma média de 7 anos foi de aproximadamente 13%. Em outras palavras, no mundo real, o glaucoma ainda causa cegueira, mesmo em pacientes tratados.

Quanto à importância do controle da pressão intra-ocular, o Advanced Glaucoma Interventional Study(4) demonstrou um risco significativamente menor de progressão do defeito de campo visual em pacientes com pressões intra-oculares menores que 18 mmHg em 100% das medidas ao longo de 8 anos. No entanto, mesmo neste grupo, 14,4% dos pacientes progrediram a despeito de pressões inferiores a 18 mmHg. O Normal Tension Glaucoma Study(5) foi um estudo prospectivo, randomizado e multicêntrico planejando para avaliar o efeito da redução de 30% da pressão intra-ocular em pacientes com glaucoma de pressão normal. Apesar do grupo de pacientes que atingiu esta redução ter apresentado um ritmo de progressão menor, as exceções são marcantes: 20% dos pacientes que atingiram o nível de pressão desejado progrediram, enquanto 40% dos pacientes sem tratamento se mantiveram estáveis ao longo do tratamento.



Finalmente, a Tabela 1 lista uma série de publicações que investigaram o risco de progressão do campo visual após cirurgia filtrante. As diferentes porcentagens, variando de 17% a 72%, confirmam a impressão clínica de que a redução da pressão intra-ocular é benéfica, porém não 100% eficaz. Por estes motivos é que acredito que o tratamento do glaucoma deve ser modificado. Isto não significa, entretanto, que o controle da pressão intra-ocular deve ser excluído do nosso armamentário terapêutico. O glaucoma é uma doença multifatorial e é necessário concentrar nossos esforços em identificar a patogênese da moléstia. Infelizmente, os mecanismos envolvidos na fisiopatogenia do glaucoma estão longe de serem elucidados. As pesquisas têm se direcionado ao fluxo sangüíneo do nervo óptico, à neuroproteção e à genética. O objetivo desta reflexão não é o de descutir todos os avanços de cada uma destas áreas, porém gostaria de expressar minha opinião a respeito do que existe e do que ainda está por vir em cada um destes campos de pesquisa.

Sabe-se que é possível induzir dano glaucomatoso em animais através de injeção de substâncias vasoativas (endotelina), na vigência de pressões intra-oculares normais(6). Pacientes com glaucoma de pressão normal apresentam maior índice de resistência nas artérias retrobulbares, que tende a se normalizar após o uso de substância vasodilatadora como o CO2. Vasoproteção, um termo proposto por Alon Harris, poderia ser proporcionada melhorando o fluxo sangüíneo basal, inibindo o vasoespasmo ou melhorando uma auto-regulação deficiente. No entanto, existem limitações importantes nas tecnologias empregadas para medir o fluxo sangüíneo ocular. Além disso, ainda não existem estudos longitudinais, prospectivos e randomizados confirmando que o uso de substâncias vasoativas sem efeito na pressão intra-ocular seja capaz de melhorar o controle do glaucoma. Estes estudos estão sendo realizados neste momento e incluem uma dificuldade inerente à investigação de qualquer doença crônica, lentamente progressiva: os resultados somente serão obtidos 5 a 10 anos após o seu início. Contudo, não importa o quanto estes resultados demorem, eles são fundamentais para que possamos basear nossas decisões em informação cientificamente comprovada e não em evidências indiretas.

O mesmo vale para a neuroproteção. A hipótese de proteger as células ganglionares da retina da apoptose é muito atrativa no glaucoma por dois motivos: 1) a apoptose é um processo lento, que pode responder à terapia (diferente da necrose); 2) a adição desta estratégia ao nosso armamentário poderá ser eficaz em todos os tipos de glaucoma, do glaucoma neovascular ao pigmentar. Pesquisa básica utilizando cultura de células e modelos animais dão suporte ao conceito de que estratégias neuroprotetoras devem ser investigadas em doenças como o glaucoma. Contudo, o fato de que a morte de células ganglionares da retina é secundária à apoptose é ainda controverso(7). Finalmente, ainda não temos os resultados de nenhum estudo randomizado, controlado, testando uma substância potencialmente neuroprotetora em pacientes com glaucoma ou em qualquer doença caracterizada pela perda de células ganglionares. Num futuro próximo, esperamos ter os resultados de um estudo multicêntrico que investiga a eficácia da memantina, um antagonista NMDA em pacientes com glaucoma.

As avenidas se encontram abertas para investigação em outros campos. Em 1997, Stone e cols.(8) identificaram o primeiro gene associado a uma forma de glaucoma primário de ângulo aberto: o gene inicialmente chamado TIGR e agora denominado MYOC ou GLC1A. O conhecimento das bases genéticas das diferentes formas de glaucoma nos possibilitarão identificar o gene associado, a proteína codificada pelo gene e o papel desta proteína na dinâmica do humor aquoso (ou na perda de células ganglionares da retina). A conseqüência das diferentes mutações em cada um destes genes será conhecida, possibilitando uma compreensão melhor da patogênese dos glaucomas. A aplicação deste conhecimento terá um impacto enorme na terapêutica do glaucoma. Ao conhecer a proteína anormal e sua função, será possível desenvolver medicações especificamente para bloquear as alterações induzidas pela proteína. O emprego da terapia gênica poderá evitar a síntese da proteína e conseqüentemente evitar o desenvolvimento do glaucoma, muito antes do aparecimento de dano glaucomatoso ao nervo óptico ou de defeito de campo visual. No entanto, este processo não é tão simples quanto apresenta. O papel exato da miocilina, a proteína sintetizada pelo gene GLC1A na patogênese do glaucoma ainda é desconhecido, apesar do estudo inicial ter sido publicado há quatro anos.

Em resumo, na minha opinião, não há dúvidas que reduzir a pressão intra-ocular não deve ser considerada como a única forma de tratar o glaucoma. Num futuro próximo, acredito que seremos capazes de tratar o glaucoma não só reduzindo a pressão intra-ocular, mas também empregando outras estratégias que serão aditivas ou sinergísticas ao controle pressórico. Retornando à definição do glaucoma, é fácil perceber que ela inclui as conseqüências da doença, sem qualquer informação a respeito da fisiopatogenia da moléstia. O que hoje denominamos glaucoma primário de ângulo aberto é possivelmente constituído por uma miríade de doenças, cada qual com base genética e patogênese únicas. Acredito que o avanço do conhecimento sobre a patogênese destes glaucomas é essencial para possibilitar o desenvolvimento de novas modalidades terapêuticas, que podem diferir daquelas que estamos investigando hoje. No entanto, éimportante que esta evolução seja conquistada com medicina baseada em evidências e não com evidências indiretas ou teorias.

Em 1996, a introdução do HAART (highly active anti-retroviral therapy) revolucionou o tratamento da Aids ao utilizar um coquetel de medicações que age em diferentes estágios da replicação viral. Esperamos que um dia sejamos capazes de conquistar o mesmo impacto científico ao criar nosso coquetel de medicações, que tratará o glaucoma atuando nos vários estágios de sua patogênese e, assim, de uma maneira mais eficaz.




Bibliografia
1. Hattenhauer MG, Johnson DH, Ing HH, et al. The probability of blindness from openangle glaucoma. Ophthalmology 1998; 105:2099-2104.
2. Gullo RM, Costa VP, Bernardi L, Kara-José N. Condições visuais de pacientes glaucomatosos em um Hospital Universitário. Arq Bras Oftalmol 1996;59:147-150.
3. Cella W, Toledo R, Rocha MC, Maia E, Vasconcellos JP, Costa VP. Evolução para cegueira no glaucoma primário de ângulo aberto. Apresentado como tema livre no Congresso Brasileiro de Oftalmologia em São Paulo – SP, 2001.
4. The AGIS Investigators. The advanced glaucoma intervention study:7. The relationship between control of intraocular pressure and visual field deterioration. Am J Ophthamol 2000;130:429-440.
5. Collaborative Normal Tension Glaucoma Study Group. Comparison of glaucomatous progression between untreated patients with normal tension glaucoma and patients with therapeutically reduced intraocular pressure. Am J Ophthalmol 1998;126:487-497.
6. Cioffi GA, Sullivan P. The effect of chronic ischemia on the primate optic nerve. Eur J Ophthalmol 1999;9 (Suppl. 1):S34-S36.
7. Mechanisms of neuroprotection and applications in ocular disease. Proceedings from a Roundtable discussion at the International Congress for Eye Research, July 1998, Paris. Eur J Ophthalmol 1999; 9 (Suppl.1):S60-S64.
8. Stone EM, Fingert JH, Alward WLM, et al. Identification of a gene that causes primary open-angle glaucoma. Science 1997; 275:668-670.