Numeração de páginas na revista impressa: 27 à 32
Resumo Delirium é um distúrbio mental agudo, de etiologia orgânica, precipitado por qualquer condição que leve a alterações no metabolismo cerebral, sendo bastante freqüente entre pacientes idosos hospitalizados. Seu desenvolvimento inicia uma série de eventos que pode culminar com perda de independência, aumento de morbidade e de mortalidade, além de aumentar o tempo e custos de internação e de cuidados após alta hospitalar. Trata-se de uma condição potencialmente previsível e tratável, porém pouco reconhecida e, conseqüentemente, subdiagnosticada.
O presente artigo tem como finalidade apresentar, de forma simplificada, o diagnóstico e o manejo do delirium no paciente idoso. Introdução Delirium é uma desordem mental aguda, também conhecida como estado confusional agudo e definido como uma síndrome psiquiátrica de etiologia orgânica, caracterizada por desorganização transitória das funções cognitivas, provocada por alterações no metabolismo cerebral(26). É caracterizado por estabelecimento agudo, alteração no nível de consciência, curso flutuante e distúrbios da orientação, memória, atenção, pensamento e comportamento(6,11,23,33).
É uma síndrome clínica comum, grave e potencialmente evitável é mais freqüente em pessoas idosas, principalmente naquelas com demências, déficits sensoriais, déficits funcionais e múltiplas comorbidades. Representa uma emergência geriátrica e o distúrbio psiquiátrico mais comum em pacientes idosos hospitalizados(18). O delirium também é importante por ser, em muitos casos, a única manifestação de uma doença clínica subjacente(11).
O desenvolvimento de delirium freqüentemente inicia uma cascata de eventos que culmina com a perda da independência, aumento do risco de morbidade e mortalidade, incremento dos custos e prolongamento do tempo de internação(3).
Apesar da importância e da alta prevalência em idosos hospitalizados, o delirium muitas vezes não é detectado ou é considerado, erroneamente, demência ou outras doenças neuropsiquiátricas, retardando assim seu tratamento e manejo adequado, piorando o prognóstico do paciente(16,26).
Tendo em vista a gravidade e importância dessa patologia, a equipe médica deve estar apta a fazer o diagnóstico precoce e estabelecer tratamento adequado, para que as complicações, bem como a mortalidade nos pacientes idosos acometidos por essa síndrome sejam reduzidas.
Epidemiologia
A prevalência de delirium em pacientes hospitalizados é alta. Está presente em 11% a 33% dos pacientes à admissão hospitalar e em 3% a 56% durante a internação(9,27). Em pacientes idosos no pós-operatório o delirium ocorre em 15% a 53% dos casos e em 70% a 87% daqueles em unidades de terapia intensiva(18).
Em idosos institucionalizados o delirium está presente em até 60% dos pacientes e chega a 83% no final da vida(3,18).
O reconhecimento desse quadro pelos profissionais de saúde é baixo, variando de 12% a 43% dos casos(16), sendo mais diagnosticado nos serviços que dispõem de interconsulta da Geriatria ou Psiquiatria(23).
Em pacientes hospitalizados com delirium a taxa de mortalidade durante a internação varia de 22% a 76%(1), tão alta quanto às taxas de mortalidade por infarto agudo do miocárdio e sepse(18). Alguns estudos mostram que a taxa de mortalidade se mantém elevada nos primeiros meses após a alta hospitalar, cerca de 25%(5,26).
Fatores de risco e fatores precipitantes
O desenvolvimento do delirium ocorre devido à associação de fatores de risco ou predisponentes, presentes em pacientes com algum tipo de vulnerabilidade, com fatores precipitantes, na maioria das vezes passíveis de prevenção(17,18 ,27). Qualquer condição que altere a função cerebral pode resultar em delirium, mas, geralmente, o estado confusional agudo tem etiologia multifatorial(11,18).
Entre os fatores predisponentes desta síndrome (aqueles já presentes à admissão – Tabela 1)(18) se destacam: idade avançada, presença de demência, déficits sensoriais, dependência funcional e/ou múltiplas comorbidades(9,11,18,27). Dos pacientes que desenvolvem delirium, 25% a 50% apresentam déficit cognitivo prévio(11).
Os fatores precipitantes (fatores variados que colaboram para o desenvolvimento de delirium – Tabela 2)(18) são representados principalmente por: presença de doença infecciosa (pneumonia e infecção do trato urinário) afecções pulmonares, cardiovasculares e cerebrovasculares alterações metabólicas uso ou retirada de medicações (principalmente psicotrópicos, hipnóticos, sedativos e bebida alcoólica) e cirurgias, principalmente ortopédicas e cardíacas(2,11,17,26).
Quadro clínico
Os pacientes com estado confusional agudo se apresentam principalmente com distúrbios da atenção, acompanhados de alteração de pensamento, nível de consciência, percepção, memória, orientação têmporo-espacial, linguagem, humor e/ou do ciclo sono-vigília(2,11,17,27).
Tem início agudo, com predomínio dos sintomas no período noturno. Alguns pacientes idosos podem iniciar o quadro de forma insidiosa, com sintomas prodrômicos, tais como diminuição da concentração, irritabilidade, insônia, pesadelos ou alucinações transitórias, alguns dias antes da manifestação típica do delirium(11).
A presença de ilusões e alucinações visuais não é obrigatória para fazer o diagnóstico, mas ocorre em 40% a 75% dos idosos com delirium(11).
Outras manifestações clínicas são prejuízo na capacidade de atenção e fixação, pensamento desorganizado observado por divagação ou argumentação incoerente, distúrbios da linguagem, podendo estar presente disnomia e disgrafia, rebaixamento do nível de consciência e labilidade emocional (2,11,15).
O delirium pode apresentar-se com três subtipos(27):
1) Hiperativo: o paciente está hiperalerta, com atividade psicomotora aumentada, agressivo, agitado, com tentativas de retirar sondas e cateteres, com labilidade emocional, sendo mais comum a presença de ilusões e alucinações(27) 2) Hipoativo: quando se destaca a letargia, paciente hipoalerta, com redução da atividade psicomotora, sedação e apatia(27) 3) Misto: o paciente alterna períodos de hiperatividade e de hipoatividade durante o mesmo dia(2,11,26,27), com características de ambas as formas.
A forma hiperativa é mais fácil de ser reconhecida e, portanto, tratada mais precocemente. O subtipo hipoativo, apesar de ser o mais comum, ocorrendo em mais de dois terços dos casos, é menos reconhecido(5,27). Pode ser confundido com depressão em cerca de 40% dos casos(13).
A flutuação do quadro do paciente durante o dia com piora à noite, é uma das principais características do delirium. A alteração do ciclo sono-vigília com predomínio de sonolência diurna e agitação noturna, também é um achado freqüente(2,9,15,33).
A duração do estado confusional agudo varia de uma semana até dois ou mais meses todavia, na maioria das vezes, o quadro é revertido em 10 a 12 dias(26).
Diagnóstico
O diagnóstico de delirium depende muito de suspeita clínica e rastreio diário da equipe de atendimento para evitar subdiagnóstico. Isto é válido especialmente naqueles idosos com a forma hipoativa que não apresentam quadro clínico com comportamento aberrante, como os hiperativos, o que dificulta a identificação(4,23).
Os critérios diagnósticos para detecção do delirium são determinados pelo Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM IV) – (Tabela 3)(2). Instrumentos de avaliação do estado mental(25), como o Mini Exame do Estado Mental (MEEM) ou o Confusion Assessment Method (CAM)(8,10-12,19), podem contribuir e facilitar o diagnóstico. Vale lembrar que o MEEM pode ficar muito prejudicado pelo déficit de atenção característico do quadro.
O passo seguinte à confirmação diagnóstica consiste em identificar os fatores predisponentes e precipitantes, assim como a causa do delirium. É imperativo lembrar que muitas doenças em idosos têm apresentações clínicas atípicas ou sutis – delirium pode ser a única manifestação de uma doença grave como infarto agudo do miocárdio, infecção ou insuficiência respiratória(29).
Uma história minuciosa deve incluir antecedentes mórbidos e de delirium prévio, uso ou retirada de medicações (prévias, atuais e de longa data, com e sem receita médica), abuso de substâncias (álcool e drogas) e déficits sensoriais (auditivo e visual)(28,31). Em muitas situações estas informações precisam ser obtidas de um acompanhante ou familiar, pois o paciente não consegue colaborar. Este questionamento ajuda também a diferenciar delirium de demência e a documentar o estado cognitivo anterior(4,18,33).
O exame físico deve ser detalhado, com ênfase na busca de focos infecciosos e alterações no exame neurológico.
Alguns exames laboratoriais devem ser solicitados em todos os pacientes, tais como hemograma completo, eletrólitos (Na+, K+, Ca++), função renal (uréia e creatinina), enzimas hepáticas e bilirrubinas, glicemia e urina 1(11,23,26,31). Deve-se solicitar ainda na investigação inicial a radiografia de tórax e o ECG. De acordo com a anamnese e exame clínico, pode-se prosseguir a investigação com exames complementares mais específicos (bioquímica, sorologias, culturas e outros mais). O eletroencefalograma (EEG) é útil para diagnóstico de convulsões ocultas e descartar alterações psiquiátricas (mania, psicose). Estudos de neuroimagem têm baixo rendimento (poucos resultados positivos pelo número de exames realizados). Assim, devem ser reservados para indivíduos com sinal neurológico focal novo, traumatismo craniano, suspeita de metástase cerebral ou encefalite (febre e alteração mental aguda) e naqueles sem etiologia definida. A coleta de líquido cefalorraquidiano deve ser realizada quando há meningismo com ou sem febre e/ou cefaléia(18,23).
Prevenção Medidas de prevenção não farmacológicas devem ser tomadas em todos os pacientes idosos, principalmente naqueles de maior risco para delirium: idade ³ 70 anos, saúde muito comprometida e presença de déficit cognitivo(23). Estudo mostrou que a interconsulta geriátrica reduz significativamente a incidência de delirium após fratura de quadril(22), logo, sempre que possível, todo paciente idoso internado em hospital deve ser avaliado por geriatra.
Identificar os fatores de risco e diminuir os fatores precipitantes é a principal intervenção para reduzir o surgimento do delirium(11,18,26,27). Dentre as recomendações para a prevenção do delirium se destacam: detectar e tratar comprometimento cognitivo manter ambiente silencioso, com pistas para orientação (calendário, relógio, objetos familiares), envolver familiar nos cuidados(2) favorecer sono tranqüilo evitar ou reduzir o uso de medicações que possam precipitar delirium (anticolinérgicos, benzodiazepínicos, antidepressivos tricíclicos, opióides)(11,23,26,32) corrigir distúrbios hidroeletrolíticos informar o paciente sobre os procedimentos aos quais será submetido corrigir déficit sensorial (óculos e prótese auditiva já do seu uso) evitar desnutrição evitar o uso de cateteres favorecer mobilização e não restringir fisicamente prevenir e tratar abstinência alcoólica e por benzodiazepínicos, otimizar as condições cirúrgicas (analgesia adequada, evitar hipotensão e hipoxemia, corrigir anemia)(18,23,26).
Tratamento
O tratamento deve ser direcionado para reverter as causas evidentes, disponibilizar cuidados de suporte e prevenir complicações, além de tratar os sintomas comportamentais(4,21,23). Como o delirium é uma emergência médica, a primeira meta deve ser eliminar os fatores predisponentes e precipitantes, avaliando e tratando prontamente cada causa presumida ou confirmada, retirando as drogas potencialmente prejudiciais(418,20,23).
As intervenções de suporte visam restaurar as condições fisiológicas e reorientar o paciente no tempo e espaço. Todos os idosos devem receber atenção quanto à manutenção de volume e nutrição adequada, proteção de vias aéreas com prevenção de aspiração pulmonar, mobilização para prevenir trombose venosa profunda e úlceras por pressão(18,23).. O controle dos sintomas do delirium é dividido em ações não farmacológicas e farmacológicas(1,11,21,26). As medidas não farmacológicas são as já citadas na prevenção e devem ser instituídas para todos os indivíduos(18,23). O tratamento farmacológico não tem evidências suficientes para apoiar sua indicação, devendo ser evitado ao máximo, segundo os especialistas. É restrito aos idosos com agitação grave o suficiente para colocar em risco a equipe, os outros pacientes, o tratamento e a si mesmos. Recomenda-se iniciar doses baixas e ajustar até o efeito desejado, mantendo a dose por dois a três dias, reavaliando quanto ao aparecimento de efeitos colaterais(21,25,27).
Dentre as medicações utilizadas, os antipsicóticos são os mais indicados no delirium, apesar de não existirem muitos estudos com bom nível de evidência(1,20,14). O haloperidol é um antipsicótico de primeira geração (típico) que leva a bom controle dos sintomas. Apresenta baixa incidência de depressão respiratória, hipotensão arterial e efeito anticolinérgico, mas tem como efeito colateral sintomas extrapiramidais, principalmente com doses diárias acima de 3 mg. A dose recomendada é de 0,5 a 1,0 mg a cada 12 horas, via oral (com dose adicional a cada 4 horas, se necessário), ou intramuscular de 0,5-1,0 mg (repetido após 30-60 minutos, se necessário). Não deve ser administrado por via intravenosa devido à curta duração do efeito(9,11,14,23).
Os antipsicóticos atípicos (de segunda geração) estão sendo estudados mais recentemente, com escassas informações e poucas apresentações parenterais disponíveis até o momento. Têm menos efeitos extrapiramidais que os típicos, mas foram associados a aumento de mortalidade em idosos demenciados em alguns trabalhos. A dose oral destas medicações é de risperidona 0,5 mg a cada 12 horas, olanzapina 2,5 a 5,0 mg ao dia e quetiapina 25 a 50 mg ao dia(7,30,32).
Os benzodiazepínicos são considerados agentes de segunda linha no tratamento do delirium do idoso, já que tem menor eficácia que os antipsicóticos e podem induzir reação paradoxal (exacerbação da agitação – mostrada apenas em relatos de casos). Sua indicação é na abstinência de álcool e de benzodiazepínicos, além do possível uso na doença de Parkinson(1,26).
Não há estudos em idosos sobre a associação de antipsicóticos e benzodiazepínicos, comumente utilizada em jovens delirantes(24).
Quando não houver resposta do delirium após resolução de fatores associados e causadores ou dúvidas quanto à condução do caso, recomenda-se solicitar avaliação de um especialista – psiquiatra geriátrico, geriatra, neurologista, psiquiatra.
Finalmente, como o quadro de delirium pode levar de semanas a meses até resolução completa, o paciente deverá receber cuidados supervisionados após a fase aguda. O seguimento clínico deve ser próximo, já que, apesar desta atuação, o delirium tem prognóstico pobre(11,25). Está associado a diminuição da capacidade funcional (mesmo após recuperação do quadro agudo) e comprometimento cognitivo, gerando maiores índices de institucionalização(18). Os custos com hospitalização e cuidados pós-alta se tornam mais elevados. A morbidade excessiva leva a grande procura por serviços de saúde e, posteriormente, maior mortalidade(23).
Conclusão
Por ser delirium uma condição grave, acarretando um alto potencial de complicações, cujo diagnóstico depende de suspeita clínica, do conhecimento de seu quadro clínico e valorização dos fatores predisponentes e precipitantes, todo médico que atende um paciente idoso suscetível a ter ou desenvolver um estado confusional agudo, deve suspeitar desse diagnóstico e tratá-lo da melhor forma possível.
Lembrar sempre que o diagnóstico correto e o tratamento adequado, incluindo a correção dos fatores de risco e a instituição de medidas não farmacológicas e farmacológicas, reduzem as complicações e mortalidade em idosos hospitalizados.
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