Numeração de páginas na revista impressa: 11 à 16
Resumo
A infecção do trato urinário (ITU) é uma síndrome clínica de alta incidência, predominantemente em mulheres, sendo tratada, muitas vezes, de forma empírica, isto é, sem uma confirmação microbiológica. Devido à carência de pesquisas sobre infecção urinária no Nordeste do Brasil, o presente estudo se propôs a identificar o perfil etiológico dessa infecção e a suscetibilidade dos microrganismos isolados diante dos antimicrobianos em mulheres maiores de 18 anos, aproveitando-se a demanda espontânea de um laboratório privado, situado na cidade de Recife – Pernambuco. O período da pesquisa foi o compreendido entre novembro de 2006 e maio de 2007. Analisou-se um total de 1.550 amostras de urina oriundas de pacientes com queixas urinárias que incluíam: disúria, polaciúria, dor em baixo ventre, através da cultura em meios de Ágar sangue e Teague. As 502 culturas positivas foram submetidas a uma bateria de testes bioquímicos para identificação bacteriana, através da inoculação das colônias em meios de tríplice açúcar ferro (TSI), lisina, indol e ornitina. Empregou-se ainda o método da difusão em Ágar para avaliar-se o perfil de sensibilidade dos patógenos aos antimicrobianos. As bactérias mais frequentemente isoladas foram: Escherichia coli (61,16%), Klebsiella pneumoniae (12,75%) e Proteus mirabilis (7,37%). Curiosamente, o Staphylococcus saprophyticus foi o quinto isolado em ordem de frequência (2,79%). Verificou-se uma resistência importante dos três microrganismos frequentemente isolados a sulfametoxazol-trimetoprima (SMZ-TMP) (em, respectivamente, 46,58%, 29,69% e 18,92% dos casos), o que desaconselha o seu uso como droga de primeira escolha para tratamento de ITU. O perfil de resistência bacteriana às duas quinolonas testadas, ciprofloxacina e norfloxacina, foi semelhante nas uroculturas estudadas, tendo a E. coli demonstrado uma resistência significativa a esses dois antimicrobianos (20,85%).
Ademais, a resistência aos antimicrobianos beta-lactâmicos testados foi significativa, tendo a ampicilina um índice de resistência de 67,1%. Em relação às cefalosporinas, os patógenos demonstraram maior suscetibilidade.
Conclui-se que a análise periódica da etiologia da ITU e da resistência bacteriana em determinada região é útil para orientar e tornar o tratamento empírico mais eficaz.
Introdução
A infecção aguda do trato urinário (ITU) consiste na colonização por agentes infecciosos, com invasão tecidual, em qualquer parte do trato urinário. Decorre de invasão pelas vias: hematogênica, linfática, por extensão direta de outros órgãos e ascendente(7), sendo a última a mais frequente(8). A aderência da bactéria à bexiga leva ao quadro de cistite bacteriana ou infecção do trato urinário baixo, que apresenta sintomas clínicos característicos, tais como disúria, polaciúria ou aumento da frequência urinária, urgência miccional, dor em baixo ventre e sensação de esvaziamento vesical incompleto(3-5).
Quando acomete os rins instala-se a pielonefrite. A ITU é considerada não complicada quando o trato urinário é normal à investigação, enquanto a ITU complicada está associada a uma condição subjacente que aumenta o risco de falha terapêutica, como múltipla resistência bacteriana, fatores obstrutivos (cálculos, tumores etc.), funcionais (bexiga neurogênica, refluxo vesicoureteral etc.) e metabólicos (insuficiência renal, diabetes mellitus etc.)(7,8).
Histopalogicamente, a cistite aguda é caracterizada por uma inflamação limitada à camada da mucosa superficial da bexiga(1). É uma afecção extremamente frequente, com predomínio no sexo feminino a partir do um ano de vida até aproximadamente a sexta década. A maior suscetibilidade da mulher à cistite se deve a uretra mais curta e a maior proximidade do ânus com o vestíbulo vaginal e uretra(2).
Segundo Rubinstein(6), cerca de 20% das mulheres apresentam, pelo menos, um episódio de ITU na vida. Estima-se que 80% das mulheres com infecção urinária tratada venham a apresentar recorrência e que, aproximadamente, 20% das mulheres têm infecções recorrentes em função de fatores anatômicos e imunológicos locais.
A frequência dos germes causadores de ITU varia na dependência de onde foi adquirida a infecção, extra ou intra-hospitalar. No entanto, os germes gram-negativos entéricos são os mais comuns, especialmente a Escherichia coli, que é a mais frequente independentemente da série estudada(2). Tolkoff-Rubin e Rubin(9) afirmam que mais de 95% das infecções urinárias são causadas por bacilos gram-negativos, pelo Enterococcus faecalis e pelo Staphylococcus saprophyticus (germe gram-positivo), sendo esse último microrganismo considerado a segunda causa mais frequente de ITU não complicada em mulheres jovens sexualmente ativas(9,10). A sensibilidade aos antibióticos também varia dependendo da população em estudo.
Em avaliação realizada no ambulatório de ITU da Disciplina de Nefrologia da Universidade Federal de São Paulo, a maioria dos patógenos isolados se mostrou menos sensível à associação a sulfametoxazol-trimetoprima (SMZTMP) com resistência em torno de 30%, tornando as quinolonas mais indicadas para o tratamento e profilaxia da ITU não complicada nesse serviço(2).
A utilização empírica, ou seja, sem uma confirmação microbiológica, de antimicrobianos de largo espectro no tratamento da ITU e a descontinuidade do tratamento, por má adesão à orientação médica, são responsáveis por um maior índice de recorrência de infecção por bactérias multirresistentes, seja através de recidiva ou de reinfecção(7).
Um curso de três dias de antibioticoterapia é o recomendado para cistite aguda não complicada, por ter menor custo, melhor adesão do paciente e menor frequência de efeitos colaterais, além de sua eficácia ser semelhante a tratamentos mais prolongados. A SMZ-TMP é frequentemente uma das drogas recomendadas. As fluoroquinolonas têm eficácia comparável a SMZ-TMP no esquema de três dias, diferentemente da nitrofurantoína, que deve ter seu uso prolongado para sete dias para ter eficácia semelhante, e dos beta-lactâmicos, que não comprovaram ser tão bons mesmo nos esquemas mais prolongados(9). Entretanto, diante da suspeita de infecção urinária alta (pielonefrite) se recomenda a realização de urocultura e antibiograma. A antibioticoterapia deve ser mais prolongada, por 7 a 14 dias, e muitas vezes se utiliza administração parenteral no início do tratamento(7,8).
A ITU, particularmente a cistite, é uma síndrome clínica de alta incidência, predominantemente em mulheres, sendo tratada, muitas vezes, de forma empírica. A ocorrência do patógeno causador de ITU varia de modo significativo, de acordo com a localização geográfica, sendo necessário monitorar os padrões de resistência bacteriana, periodicamente, no sentido de orientar o uso racional da terapia antimicrobiana. Devido à carência de estudos sobre ITU na região Nordeste do Brasil, a presente pesquisa teve como objetivo identificar o perfil etiológico da infecção urinária e a suscetibilidade dos microrganismos isolados diante dos antimicrobianos em mulheres maiores de 18 anos na cidade do Recife – PE.
Pacientes e métodos
Estudou-se, no período compreendido entre novembro de 2006 e maio de 2007, 1.550 amostras de urina oriundas de pacientes do sexo feminino entre 18 e 60 anos, com queixa de ITU (disúria, polaciúria) que procuraram espontaneamente um laboratório da rede privada, Etiologia e perfil de resistência das bactérias isoladas a partir de uroculturas oriundas de mulheres acima dos 18 anos situado no Recife, para realização de urocultura. O presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em pesquisa envolvendo seres humanos do Centro de Ciências da Saúde – Universidade Federal de Pernambuco (número do protocolo: 056/06). As pacientes foram informadas sobre o estudo e as que aceitaram participar assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido. Não foi realizado nenhum procedimento adicional, apenas a análise laboratorial da amostra, previamente solicitada pelo médico assistente da paciente. Foram excluídas amostras urinárias oriundas de pacientes que referiam uso prévio de antibióticos ou hospitalização nos 30 dias que precederam o exame.
As amostras de urina foram coletadas em recipientes plásticos apropriados e estéreis fornecidos pelo laboratório. Foi seguida a recomendação de asseio prévio da genitália com água e sabão e, então, coleta do jato intermediário da urina. A coleta foi realizada no próprio laboratório ou nas residências das pacientes, desde que trazidas imediatamente após a coleta ao laboratório.
Realizou-se inoculação das amostras de urina com ajuda de alça de platina em placas de Petri contendo os meios de Ágar sangue e Teague (Difco-USA). Após 24 horas de incubação a 37ºC, as placas foram examinadas quanto à presença de crescimento bacteriano. A seguir as culturas positivas foram submetidas a uma bateria de testes bioquímicos para identificação bacteriana, através da inoculação das colônias em meios de tríplice açúcar ferro (TSI), lisina, indol e ornitina.
Na avaliação da suscetibilidade às drogas antimicrobianas se empregou o método da difusão em Ágar, descrito por Woods et al.(10). Foram utilizados discos em concentração única das seguintes drogas em meio Ágar de Müller Hinton: ampicilina (10 mg), cefalotina (30 mg), gentamicina (10 mg), tetraciclina (30 mg), sulfametoxazol- trimetoprima (25 mg), ácido nalidíxico (10 mg), ciprofloxacina (30 mg), cefoxitina (10 mg), amicacina, cefepima, ceftazidima, cefotaxima, amoxacilina + ácido clavulânico, nitrofurantoína, norfloxacina, tobramicina, ceftriaxona.
Resultados
Das 1.550 uroculturas analisadas, 502 (32,4%) demonstraram crescimento bacteriano. Os principais agentes isolados em ordem de frequência foram: Escherichia coli em 307 (61,16%) das amostras, seguida da Klebsiella pneumoniae em 64 (12,75%) das uroculturas e do Proteus mirabilis positiva em 37 (7,37%) das amostras (Tabela 1).
Dos 502 antibiogramas realizados as bactérias demonstraram resistência em maior frequência a: ampicilina com 337 (67,1%) dos antibiogramas, a sulfametoxazol-trimetoprima em 205 (40,8%), a amoxacilina + clavulanato em 162 (32,3%), ao ácido nalidíxico em 108 (21,5%), a ciprofloxacina e norfloxacina em 81 (16,1%).
Em relação ao perfil de resistência da Escherichia coli se demonstrou que, em 50 (16,29%) de todas as amostras de urina positivas para o seu crescimento, essa bactéria foi sensível a todos os antimicrobianos testados no estudo. A E. coli se mostrou resistente à ampicilina em 73,62% dos casos, a sulfametoxazol-trimetoprima em 46,58% dos casos e às duas quinolonas de segunda geração testadas (ciprofloxacina e norfloxacina) em 20,85% dos casos. O perfil de resistência completo da Escherichia coli está exposto na Tabela 2.
Na análise do perfil de resistência antimicrobiana da Klebsiella pneumoniae se demonstrou que, em nenhuma das uroculturas positivas para o crescimento dessa bactéria, houve sensibilidade a todos os antimicrobianos testados neste estudo. O patógeno se mostrou resistente à ampicilina em 98,44% dos casos, ao sulfametoxazol-trimetoprima em 29,69% dos casos e às quinolonas de segunda geração em 7,81% dos casos. O perfil de resistência completo da Klebsiella pneumoniae está exposto na Tabela 3.
Já o perfil de resistência antimicrobiana do agente Proteus mirabilis demonstrou que em nenhuma das amostras positivas para o seu crescimento a bactéria foi sensível a todos os antimicrobianos testados no estudo. Esse agente foi resistente à ampicilina em 24,32% dos casos, ao sulfametoxazol-trimetoprima em 18,92% e às quinolonas em 5,41% dos casos. O perfil de resistência completo do Proteus mirabilis está exposto na Tabela 4.
Discussão
No presente estudo se observou a Escherichia coli como o principal agente isolado nas uroculturas positivas oriundas de mulheres com queixa de infecção urinária. Esse achado está em concordância com a literatura existente sobre o tema. Entretanto, verificamos uma frequência menor desse microrganismo (61,16%) em relação a muitos outros estudos, tanto brasileiros como de outros países, que apontam frequência de E. coli igual a 70%, a 80% e até a 95% dessas infecções(1,2,7,8). Por outro lado, outros germes gram-negativos, como a Klebsiella pneumoniae (12,75%) e o Proteus mirabilis (7,37%), foram responsáveis por uma proporção maior de casos que o esperado para a suspeita de ITU não complicada. O P. mirabilis é responsabilizado por apenas 1% a 2% dos casos de ITU não complicada, sendo mais frequente em pacientes cateterizados (10% a 15%). Excluímos as uroculturas provenientes de pacientes hospitalizadas ou que realizaram antimicrobiano nos últimos 30 dias que precederam o exame, não havendo menção de uso de cateter em nenhuma das pacientes estudadas, o que torna esse achado incomum. Curiosamente o Staphylococcus saprophyticus foi o quinto agente isolado, com frequência de 2,79%, entretanto, esse microrganismo é apontado por muitos como a segunda causa de ITU em mulheres jovens, com uma frequência em torno de 10% a 15%. Esse resultado talvez tenha decorrido pela ampla faixa etária avaliada (18 a 60 anos).
A SMZ-TMP é considerada a droga de primeira linha para o tratamento de cistite aguda em mulheres jovens por diversos autores(³,7,8). Porém, verificou-se uma resistência importante da Escherichia coli, principal agente isolado ao SMZ-TMP (em 46,58% dos casos). A Klebsiella pneumoniae e o Proteus mirabilis se mostraram resistentes em menor porcentagem dos casos do que a E. coli, mas, ainda assim, em parcelas consideráveis das amostras.
O uso indiscriminado, ao longo dos anos, da SMZTMP para o tratamento de cistite seria um dos principais fatores responsáveis pelo aumento crescente da resistência dos patógenos causadores de ITU devido à pressão seletiva da flora microbiana endógena.
Os resultados do presente estudo sugerem que a SMZTMP não seja mais considerada como droga de primeira escolha para tratamento de cistite no local onde se realizou a pesquisa (Recife – PE), já que a literatura não recomenda o SMZ-TMP como droga de primeira linha em áreas cuja resistência da E. coli frente a essa associação seja maior do que 20%.
As fluoroquinolonas representam outra classe de antimicrobiano considerada eficiente para o tratamento de infecção urinária(7,9,11). Na análise do perfil de resistência das bactérias diante dos antimicrobianos, os resultados não evidenciaram diferença entre as duas fluoroquinolonas de segunda geração (norfloxacina e ciprofloxacina) testadas neste estudo. A Escherichia coli apresentou uma resistência significativa diante dessas duas fluoroquinolonas (em 20,85% dos casos). Verificou-se que a Klebsiella pneumoniae e o Proteus mirabilis demonstraram resistências (7,8% e 5,41%, respectivamente) menos importantes que as fluoroquinolonas. Como os resultados não evidenciaram diferença entre esses dois antimicrobianos, pode-se sugerir que, para tratar infecção urinária baixa, seja preferível o uso da norfloxacina, por essa droga apresentar excreção exclusivamente renal e ser de menor custo.
Deve-se reservar o uso da ciprofloxacina, que apresenta excreção tanto renal como através da bile, para o tratamento de infecções das vias biliares ou para casos de pielonefrite. Além disso, a norfloxacina apresenta um menor custo em relação a ciprofloxacina.
Verificou-se um elevado percentual (67,1%) de resistência à ampicilina nas uroculturas avaliadas, desaconselhando-se a sua utilização empírica no tratamento de infecção do trato urinário. A ampicilina associada a um aminoglicosídio é recomendada para tratamento da pielonefrite em muitos países(9-11). Por outro lado, a nitrofurantoína demonstrou ser uma boa alternativa para o tratamento da cistite, pois a E. coli foi resistente em apenas 1,9% dos casos a esse antimicrobiano. A nitrofurantoína, além de ser uma droga de baixo custo, deve ser considerada opção terapêutica em gestantes, já que as fluoroquinolonas são contraindicadas nessas pacientes. Entretanto, uma restrição ao seu uso foi o achado de resistência completa do P. mirabilis, terceiro em ordem de frequência no presente levantamento. O ácido nalidíxico, por sua vez, também demonstrou boa cobertura nas amostras estudas, mas inferior as quinolonas de segunda geração, com índice de resistência geral de 21,51%.
Acreditamos que a utilização empírica de antimicrobianos no tratamento das cistites em mulheres jovens apresenta uma boa relação de custo-benefício, entretanto, a análise periódica local com a realização de urocultura e antibiograma se faz necessária, servindo para nortear o tratamento dessas infecções. Portanto, não se deve negligenciar as diferenças regionais no que concerne a resistência bacteriana e que comprometem a eficácia terapêutica de muitas infecções. Por vezes, o tratamento empírico, sem o conhecimento do perfil local de resistência, gera a maior utilização de antibióticos de amplo espectro, estimulando, dessa forma, o desenvolvimento de cepas locais resistentes.
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