Numeração de páginas na revista impressa: 44 à 47
Introdução
O hímen imperfurado e atresia vaginal são conhecidos desde o tempo da Grécia e Roma, sendo que a primeira referência sobre estas patologias na Grécia foi atribuída a Hipócrates (? 460 – ? 370 BC) e, em Roma, a mais completa descrição de atresia vaginal foi primeiramente relatada por Celsus (primeiro século AD-data não conhecida). Engel (1781) descreveu um dos mais exatos relatos de ausência de vagina e útero, contando o resultado de uma autópsia de mulher jovem que morreu repentinamente(2).
Ausência vaginal congênita é uma deformidade de origem embrionária que resulta da agenesia do tubo mesonéfrico (aplasia mullerina), com sua incidência relatada em torno de 1 para 5000 nascidos vivos(6). A principal afecção que envolve esta patologia se denomina síndrome Mayer-Rokitansky-Kuster-Hauser, cujos pacientes se apresentam cromossomicamente como 46 XX. Em 1838, Rokitansky descreveu 19 casos de autópsias em adultos com agenesia útero-vaginal, incluindo três em que se notou agenesia renal. Em 1829, Mayer descreveu duplicações parciais e completas da vagina em quatro natimortos com várias anomalias, incluindo fenda labial e defeitos em membros, cardíacos e urológicos. Em 1910, Küster descreveu vários casos com anatomia genital similar e observou que anomalias renais e esqueléticas são comuns. Hauser e Schreiner enfatizaram a importância de se distinguir esta síndrome em relação ao testículo feminilizante, tendo em vista que ambos são relacionados ao desenvolvimento vaginal(1).
Etiologia
Embriologia O desenvolvimento normal do ducto mulleriano em embrião fêmea, na ausência de testosterona e da substância inibitória mullerina (MIS) permite a diferenciação e desenvolvimento dos dutos mullerianos e regressão dos dutos wollfianos. Os dutos mullerianos são identificados em torno de seis semanas em ambos os sexos (masculinos e femininos). Ao redor de nove semanas ele se alonga e atinge o seio urogenital, formando o canal útero-vaginal. Os dois dutos mullerianos crescem em sentido craniano em direção ao fundo uterino, no qual acontece a fusão e o crescimento é completado em torno de 15 e 26 semanas.
Teorias do desenvolvimento vaginal O mecanismo específico que leva a falha do desenvolvimento vaginal ainda não foi elucidado, sendo que múltiplos eventos podem promover ou interferir no processo de desenvolvimento normal. Há evidências de que fatores de regulação como sinais autócrino e parácrino e alterações na matriz orgânica podem estar envolvidos. Existem duas diferentes teorias organogênicas que sugerem diferentes explicações para agenesia vaginal, uma dualística e outra uma teoria unitária. De acordo com a dualística ou clássica (Koff, 1933), somente parte inferior da vagina é de origem ectodérmica, derivando do seio urogenital e a parte remanescente é de origem mulleriana (mesodérmica). Pela teoria unitária, sugerida por Meyer, em 1934, e Bulmer, em 1957, e resumida por Hoang-Ngoc Minh e outros, em 1984, a vagina deriva através de uma placa vaginal (proliferação do seio urogenital) e conseqüentemente é de origem ectodérmica. O papel do duto mulleriano no desenvolvimento da vagina é indireto, com interposição de um indutor de tecido mesenquimal que poderia estimular a proliferação craniana da placa vaginal. De acordo com esta teoria, a aplasia vaginal poderia depender de um defeito no indutor de tecido mesenquimal e poderia estar associado ou não com um útero funcional(3).
Transmissão genética O modo de transmissão genética não tem sido bem documento e tem sido refutado pela discordância na ocorrência de atresia vaginal em três pares de gêmeos monozigóticos. Pacientes com síndrome Mayer-Rokitansky-Kuster-Hauser (RMKH) e atresia vaginal são fenoticamente e genoticamente normais, além do “status” hormonal feminino com tipo cromossômico 46 XX. Contudo, uma associação familiar sugere uma transmissão autossômica dominante de um gene mutante de parente masculino(5). Classificação
Em 1998, a Sociedade Americana de Medicina Reprodutiva classificou os tipos de anomalias mulleriana e nesta classificação atresia vaginal ficou com a classe I, que se refere à hipoplasia e aplasia do útero(4). A classificação proposta por Tarry e col., em 1986, que incorpora a classificação de Monie & Sigurdson e a de Muller, avalia o desenvolvimento mulleriano de cada lado através do exame médico, ultra-som ou laparoscopia e pode mostrar implicações prognósticas em relação à fertilidade e menstruação. O grau de classificação varia de 0 a 4, acompanhado da letra M que se refere ao defeito mulleriano, desta forma 0 se relaciona a defeito septal; 1 a anomalia vaginal; 2 a anomalia vaginal e uterina; 3 a anomalia mulleriana total, que inclui trompas; e 4 existe uma associação entre anomalia mulleriana e agenesia ovariana(1).
Quadro clínico
Um dos principais quadros clínicos da agenesia vaginal é a amenorréia primária. Sendo a agenesia vaginal a segunda causa mais comum de amenorréia primária em centros terciários. Contudo, a síndrome RMKH, que, além do quadro infertilidade e dispauremia, também apresenta outros quadros clínicos, como dor e massa abdominal, sepses e distúrbios respiratórios(13).
A mais comum apresentação de atresia vaginal é uma associação com ausência uterina, mas também ocorre com anomalia renal, como agenesia renal, rins ectópicos, rins em ferradura e ectopia cruzada, em torno de 40% dos casos e também anomalias do esqueleto são encontradas em torno de 10% a 12% e, entre elas, destaca-se a síndrome Klipel-Feil (desenvolvimento aberrante dos somitos cervicotorácicos) que se manifesta como fusão das vértebras ou outras variantes e anomalias de costelas e membros e também podem ser encontradas, além de anormalidades auditivas em torno de 4% a 5%(7).
O principal diagnóstico diferencial desta patologia é a síndrome testículo feminilizante (resistência androgênica) que tem uma incidência de 1 para 20.000 nascidos vivos, é cromossomicamente XY.
Diagnóstico
Além da história clínica e do exame físico, em que se observa alteração do aspecto vaginal como leves alterações de implantação e “coto curto”, no exame retal apresenta remanescente de tecido fibroso em nível da topografia uterina.
Normalmente se realizam, na avaliação, exames complementares, como ultra-sonografia renal e pélvica, e em alguns casos em que a ultra-sonografia não foi elucidativa se complementa com ressonância nuclear magnética e/ou laparoscopia, dando-se preferência para o primeiro, em virtude de ser menos invasivo. A avaliação genética e hormonal também é realizada rotineiramente(7,15).
Tratamento
No século XIX ocorreram grandes avanços no reconhecimento e tratamento da ausência e obstrução vaginal, impulsionado principalmente por cirurgiões como Dorsey, Dupuytren, Warren e Heppner, sendo que este último, que tinha um especial interesse por problemas genitais femininos, utilizou uma incisão em forma de “H” na região do septo reto vaginal e forrou a cavidade neoformada com “flaps” do lábio maior e coxa, prevenindo o seu fechamento. Segundo relatos dos próprios cirurgiões, uma das maiores dificuldades da época era manter a nova cavidade aberta mesmo com utilização de “moldes”(2).
Em 1938, Frank propôs uma técnica simples não cirúrgica de realização de uma “neovagina” que seria a aplicação de pressão no septo entre a vagina e o reto com um tubo de vidro(2). No mesmo princípio estaria o procedimento de Wharton-Sheares-George, que utiliza os dutos mullerianos como orientação e com auxílio de um dilatador Hegar. Outro procedimento que utiliza um plástico na forma de oliva para criar o espaço vaginal, denominado de técnica de Vecchietti’s, mas este procedimento utiliza o auxílio da laparotomia ou na forma modificada, a laparoscopia(7,24).
Na transição do século XIX para o XX, o norte-americano Robert Abbe, de Nova York, foi o pioneiro a utilizar o enxerto de pele para a reconstrução, sendo hoje um dos principais métodos utilizados para reconstrução vaginal, principalmente após McIndoe, em 1938, relatar sua experiência com a técnica popularizando-o e enfatizando suas vantagens de facilidade de realização, baixa morbidade e excelentes resultados finais. Atualmente uma das técnicas para reconstrução vaginal mais utilizada, principalmente pelos ginecologistas, ainda permanece a técnica de McIndoe(2,8), que sofreu algumas modificações, como mudança de incisão, tecido que recobre a cavidade vaginal (tecido de pele total x parcial, membrana amniótica)(11), local para retirar o enxerto (coxa, abdome inferior e outros)(12), mas os princípios permanecem os mesmos.
No início do século XX, Sneguiff, Baldwin e Schubert relataram sucessos de reconstrução vaginal com utilização de um segmento de intestino, mas devido à complexidade e morbidade do procedimento este foi pouco utilizado(2). Baldwin(10) foi o primeiro a descrever uma vaginoplastia baseada em segmento intestinal que, além do aspecto de morbidade e complexidade do procedimento, o mesmo apresentava um alto índice de estenose, principalmente com utilização de íleo, mas com evolução da técnica cirurgia e maior utilização de intestino grosso, principalmente sigmóide, houve uma melhora dos resultados e uma diminuição da morbidade, como demonstrado por Khen-Dunlop et al.(15), num estudo francês, que avaliaram 23 pacientes com agenesia vaginal e realizaram vaginoplastia com segmento sigmóide no período de 15 anos. Kapoor et al.(16), em estudo com 14 pacientes, relataram, também, uma diminuição do índice de estenose e referem que a neovagina com segmento intestinal se apresenta lubrificada e diminuição da utilização de moldes, sendo este procedimento o preterido pelos urologistas pediátricos.
Apesar dos procedimentos anteriores para reconstrução vaginal relatarem um resultado satisfatório, todos utilizaram molde para criação e manutenção do espaço da neovagina, o que causa desconforto, ainda tendo o risco de estenose e fechamento desta cavidade. Outras técnicas que se baseiam em rotação de retalhos foram descritas, na tentativa de eliminar a utilização do molde e melhorar o aspecto e a sensibilidade do tecido, em virtude de manter a irrigação sangüínea e também uma ferida operatória com uma cicatriz aceitável, sem o desconforto e secreção de muco desagradável que ocorre nas neovaginas feitas com intestino. Dessa forma, Wee and Joseph (Cingapura)(17) demonstraram uma nova técnica de reconstrução vaginal que se baseava na utilização de “Flaps” neurovascular pudendo-coxa em três casos, sendo um caso de exanteração pélvica total e dois casos de atresia vaginal com bons resultados. Outras técnicas com este princípio foram descritas, como a experiência de Woods et al.(18) que utilizou uma forma modificada do “Flap” de Cingapura e também Giraldo et al.(20) que relataram retalho da mesma região para reconstrução vaginal no tratamento da síndrome Mayer-Rokitansky em seus pacientes. Além do mais, existem outros procedimentos em que o sítio da retirada do retalho é a parede abdominal como o método de Chen et al.(21), que utiliza um “Flap” pediculado subcutâneo da parede abdominal inferior e os retalhos miocutâneos do reto abdominal e grácil que geralmente deixa uma região cicatricial extensa(22,23); estes procedimentos que utilizam retalho cutâneo, apesar de parecer uma boa alternativa, ainda necessitam de maiores estudos.
Conclusão
Dessa forma, a tentativa de reconstrução vaginal vem desde os tempos antigos, procurando melhorar o desconforto social e ansiedade causada nas mulheres e solucionar as dificuldades que esta população tem para exercer sua sexualidade e buscar formas de manter a capacidade reprodutiva. Desde então, várias técnicas de reconstrução vaginal são descritas na literatura para correção de defeitos ou ausência da vagina, tanto de etiologia congênita como adquirida, baseando-se em princípios cirúrgicos e não cirúrgicos. Apesar dos vários tipos de tratamentos apresentados, nenhum deles configura como consenso no tratamento desta patologia.
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