Revistas Fase R003 Id Materia 3500






Revisão
Das células LE às células HEp-2: perspectiva histórica e avaliação crítica do teste de imunofluorescência indireta para pesquisa de anticorpos antinúcleo
Alessandra Dellavance
Pós-Graduanda em nível de Doutorado – Disciplina de Reumatologia – UNIFESP. Assessora científica do Setor de Imunologia – Fleury Medicina Diagnóstica.
Luís Eduardo Coelho Andrade
Professor associado – Disciplina de Reumatologia – UNIFESP. Assessor médico do Setor de Imunologia – Fleury Medicina Diagnóstica.
Endereço para correspondência: Luís Eduardo Coelho Andrade – Disciplina de Reumatologia – Rua Botucatu, 740 – 3º andar – CEP 04023-069 – São Paulo – SP – Telefax: (11) 5576-4239 – E-mail: luis@reumato.epm.br

Numeração de páginas na revista impressa: 07 à 21

Introdução


O crescente avanço científico nas áreas de pesquisa celular e molecular tem contribuído com informações novas e complexas na pesquisa de anticorpos antinúcleo (ANA) desde que Hargarves, em 1948(1), constatou a presença de material nuclear fagocitado em sangue de pacientes com lúpus eritematoso sistêmico (LES) e que recebeu o nome de fenômeno das células LE (Figura 1). Ao longo de algumas décadas o fenômeno das células LE foi um dos critérios estabelecidos pelo Colégio Americano de Reumatologia (CAR) para classificação de LES por se tratar de um exame de alta especificidade, apesar de sua baixa sensibilidade(2).


Figura 1 – Células LE. Neutrófilos fagocitam material nuclear de aspecto amorfo (setas negras). O núcleo dos neutrófilos ficam rechaçados para a periferia (cabeças de setas brancas). Hematoxilina eosina, magnificação de 400X. Cortesia do dr. Vitor Piana Andrade, Fleury Medicina Diagnóstica.

Em 1997, como resultado do desenvolvimento de ensaios laboratoriais de execução mais simples, mais reprodutivos, de maior sensibilidade e de maior especificidade em relação às células LE, esta pesquisa hematológica deixou de fazer parte dos critérios do CAR para LES, dando lugar a outros auto-anticorpos considerados marcadores de LES, como anti-Sm e anti-DNA nativo(3).

Na prática do laboratório clínico, este elaborado ensaio hematológico deixou de ser realizado e deu lugar ao teste de imunofluorescência indireta (IFI) para pesquisa de anticorpos antinúcleo (ANA-IFI)(4). Desde então, o panorama da pesquisa de auto-anticorpos tem passado por constante evolução que progressivamente tem mudado o significado de um teste positivo(5). Portanto, hoje temos necessidade de uma urgente mudança nos paradigmas de interpretação desses testes. Não há dúvida de que acompanhar as contínuas reavaliações sobre sensibilidade, especificidade e valores preditivos (Quadro 1) da pesquisa de ANA deixou de ser uma tarefa simples, porém é extremamente necessária para uma adequada interpretação de resultados.

Quadro 1 – Conceito de sensibilidade (S), especificidade (E) e valores preditivos (VPP e VPN) de um teste.



O objetivo da presente revisão é oferecer uma perspectiva evolutiva dos testes para pesquisa de anticorpos antinúcleo, uma análise crítica do seu desempenho diagnóstico e alguns elementos críticos para interpretação apropriada dos resultados. Com a finalidade de que a terminologia hoje empregada nos laudos do teste de ANA-IFI seja plenamente compreendida, a presente revisão procurará mostrar o processo histórico em suas várias etapas de forma que o leitor habituado à antiga terminologia possa facilmente fazer a transição.

A era dos ensaios utilizando cortes de roedores

O advento da IFI para triagem de anticorpos antinúcleo (ANA-IFI) em cortes ou imprint de fígado de camundongo ou de rato incontestavelmente contribuiu para identificar um rol mais amplo de auto-anticorpos que o antigo teste das células LE(4). Assim, houve um aumento da sensibilidade do teste para pacientes com LES. O novo teste passou também a indicar a possível presença de alguns auto-anticorpos em pacientes com suspeita de algumas doenças auto-imunes como esclerose sistêmica e síndrome de Sjögren, o que não era possível com a pesquisa de células LE que era limitada a informações aplicadas apenas à suspeita de LES. Esta foi a primeira mudança de paradigma, na medida em que o teste não mais era específico de LES, mas poderia ser positivo em alguns pacientes com outras doenças reumáticas auto-imunes(6). Entretanto, com o uso desse substrato, um teste de ANA-IFI positivo, apesar de não mais específico para LES, ainda trazia maior possibilidade diagnóstica de LES que de outras enfermidades. Outra discreta mudança de paradigma foi que o aumento de sensibilidade resultou em perda na especificidade até mesmo para o diagnóstico de doença reumática auto-imune, pois alguns indivíduos aparentemente hígidos (2% a 4%) passaram a apresentar resultados positivos pela técnica de ANA-IFI o que era extremamente raro com o teste das células LE.

Em ensaios de imunofluorescência indireta é possível observar padrões morfológicos resultantes da maneira como a fluorescência se distribui no substrato e que correspondem à distribuição dos auto-antígenos reconhecidos pelo soro do paciente. No caso do ANA-IFI em fígado de roedores, a observação de padrões de IFI resulta do reconhecimento de antígenos do núcleo dos hepatócitos por auto-anticorpos presentes no soro de pacientes. Nesse contexto, cinco padrões básicos foram definidos e utilizados para direcionamento de pesquisas adicionais de auto-anticorpos por testes específicos (Quadro 2). Assim, o teste ANA-IFI em fígado de roedores traz uma informação adicional em nível de rastreamento sobre a pesquisa de auto-anticorpos, principalmente anticorpos antinúcleo. O padrão de fluorescência pode oferecer uma indicação preliminar sobre a especificidade do auto-anticorpo presente, mas esta indicação é imprecisa e necessita confirmação por testes específicos.



Os testes para determinação específica de auto-anticorpos são aqueles que permitem identificar a presença de um determinado auto-anticorpo e, portanto, complementam os achados preliminares do teste ANA-IFI. Os testes tradicionais para identificação de auto-anticorpos em doenças reumáticas auto-imunes são a imunodifusão dupla de Outcherlony (IDD)(7) e a imunofluorescência indireta com emprego substratos específicos como (Crithidia luciliae)8 para detecção de anticorpos anti-DNA nativo e neutrófilos humanos para detecção de anticorpos anticitoplasma de neutrófilos – ANCA(9). Ultimamente, têm sido desenvolvidos testes de enzimaimunoensaio em fase sólida (ELISA)(10) e de hemaglutinação(11) que apresentam vantagens como rapidez e possibilidade de automação. Entretanto, esses dois últimos métodos apresentam extrema sensibilidade e eventuais resultados positivos podem não corresponder ao quadro clínico dos pacientes. Não aprofundaremos a discussão sobre os métodos específicos de identificação dos auto-anticorpos por não ser este o escopo da presente revisão.

Entretanto, deve ser enfatizado que os métodos de identificação de auto-anticorpos específicos, como a IDD, permitem confirmar uma possível associação entre os padrões observados ao teste de ANA-IFI e os respectivos auto-anticorpos. Por exemplo, a associação dos anticorpos contra SS-A/Ro e/ou SS-B/La com o padrão nuclear pontilhado fino; e de anticorpos contra Sm e/ou RNP com padrão nuclear pontilhado grosso. Tal associação entre padrão de IFI e anticorpos específicos também ocorre entre os padrões homogêneo e periférico e a presença de anticorpos anti-DNA nativo por IFI com C. luciliae como fonte antigênica.

A era da célula HEp-2

A partir de 1980, começou-se a utilizar cada vez mais um outro substrato para realização do teste de ANA-IFI. Trata-se da célula HEp-2 (American Type Culture Collection CCL-23), uma linhagem de células tumorais derivadas de carcinoma de laringe humana. Cultivadas em monocamadas sobre lâminas de vidro, essas células provaram ser um ótimo substrato para oferta de auto-antígenos no ensaio ANA-IFI. Hoje a célula HEp-2 praticamente substituiu os cortes ou imprint de fígado de roedores nos laboratórios clínicos em todo o mundo. Esta substituição deveu-se a múltiplos fatores, entre os quais o mais importante foi a excelente visibilidade de múltiplos padrões e oferta de uma miríade de auto-antígenos inerente a esse substrato. Também contribuiu a facilidade de manuseio de cultivo celular comparado à manutenção de biotérios apropriados para a criação de animais em laboratórios de rotina. Um terceiro fator foi a padronização universal já que os vários laboratórios em todo o mundo passaram a utilizar o mesmo tipo de substrato.

A célula HEp-2, por suas características tumorais, apresenta uma vasta gama de antígenos e em alta quantidade. Ademais, os elementos citológicos são grandes e bem evidenciados, contribuindo para uma ótima visibilização dos mesmos quando corados pelos auto-anticorpos (Figura 2).


Figura 2 – Imagem esquemática de núcleo celular em interfase e exemplos de padrões de IFI-HEp-2 associados a algumas estruturas celulares.

Em particular, as células HEp-2 proporcionam a visibilização de padrões de fluorescência associados a antígenos citoplasmáticos e a antígenos do aparelho mitótico, que não eram acessíveis em tecidos de roedores. Outra característica fundamental é que a célula HEp-2 expressa auto-antígenos relevantes que não são expressos em tecidos de roedores. O exemplo mais eloqüente é o do complexo SS-A/Ro, que invariavelmente está ausente em cortes de roedores. Assim, um soro monoespecífico anti-SS-A/Ro dá resultado negativo no ANA-IFI em tecido de roedores e é francamente positivo quando se usa a célula HEp-2. Finalmente, como se trata de uma cultura tumoral em constante proliferação, estão presentes células nas diferentes fases do ciclo celular (Figura 3). Este é um ponto importante, pois alguns auto-antígenos estão presentes em momentos restritos do ciclo celular, conforme será explicitado adiante.

A expressão de antígenos dependentes do ciclo celular e a melhor visibilidade dos diferentes compartimentos da célula (núcleo, nucléolo, citoplasma, aparelho mitótico e placa cromossômica metafásica) resultaram em um espectro ainda maior de padrões de fluorescência oferecidos pelo testes ANA-IFI. Os cinco padrões básicos de ANA-IFI observados no ensaio com imprint ou corte de fígado de roedores deram lugar a mais de 20 padrões que podem ser identificados e reportados nos exames de ANA com emprego de células HEp-2 (ANA-HEp-2). Alguns desses padrões de IFI e suas possíveis associações antigênicas e clínicas estão apresentados no Quadro 3 e Figura 4.

O resultado da maior oferta de antígenos levou a um expressivo aumento na sensibilidade do ensaio.

Aumentou-se o rol de auto-anticorpos passíveis de serem detectados e reduziu-se o limiar de concentração sérica a partir do qual os mesmos passam a ser detectados. Portanto, níveis baixos de auto-anticorpos por vezes não detectáveis no teste ANA-IFI com tecidos de roedores passaram a ser detectáveis no ANA-HEp-2. Uma conseqüência direta deste aumento na sensibilidade foi uma considerável perda de especificidade do teste, o que exige uma interpretação bastante criteriosa dos achados sorológicos(12).


Figura 3 – Imagem esquemática de ciclo celular e exemplos de padrões de IFI-HEp-2 associados às diferentes fases mitóticas.

A progressiva evolução dos métodos de pesquisa de ANA desde as células LE ao emprego das células HEp-2 no teste de ANA-IFI tem levado a mudanças continuadas no significado de um resultado positivo de anticorpo antinúcleo. O conhecimento detalhado deste processo e uma atualização continuada dos profissionais envolvidos na prescrição, realização e interpretação desses testes são fundamentais para o bom emprego dos mesmos.

A rápida e crescente difusão do uso das células HEp-2 em todo o mundo, tanto pela simplicidade metodológica como pelo fácil acesso a diferentes fornecedores, rapidamente evidenciaram a grande necessidade de padronização na execução do ensaio e na interpretação dos padrões de IFI. Em nosso país, esta constatação conduziu vários profissionais à realização de um Consenso Nacional para Emissão de Laudos de FAN com a finalidade de padronizar os procedimentos e a nomenclatura referentes ao teste de ANA-HEp-2 nos vários laboratórios em território nacional. Os encontros foram realizados em Goiânia em 2000 e, em 2002, sob a coordenação do Professor Paulo Luiz Carvalho Francescantonio da Universidade Católica de Goiás(13). O resultado desses encontros foi a definição da diluição das amostras na triagem, homogeneização das terminologias empregadas nos laudos, padronização da descrição dos padrões observados nos diferentes compartimentos celulares, estabelecimento de possíveis associações clínicas, veiculação de material didático para treinamento de profissionais que realizam a leitura em microscopia, troca contínua de informações entre diferentes centros que realizam o ANA-HEp-2 e a alteração do nome do teste (FAN – Fator antinúcleo) para “Pesquisa de Anticorpos Contra Antígenos Celulares”.


LES: Lúpus eritematoso sistêmico, AR: Artrite reumatóide, DMTC: Doença mista do tecido conectivo, CBP: Cirrose biliar primária.

Para o laudo final do exame, a sugestão do Consenso é que o resultado seja subdividido na descrição do padrão de fluorescência em cinco compartimentos celulares: nuclear, nucleolar, citoplasmático, aparelho mitótico e placa cromossômica metafásica (Quadros 4 a 7). O Consenso recomenda também que seja acrescentada ao laudo uma nota interpretativa, procurando traduzir o possível significado clínico e imunológico dos padrões observados na amostra.

Não resta dúvida de que atualmente, um dos fatos mais intrigantes na pesquisa de ANA-HEp-2 está no número elevado de achados positivos em indivíduos aparentemente hígidos. Na literatura esta freqüência exibe ampla variação (Quadro 8), provável reflexo das diferenças étnicas, ambientais e metodológicas (substrato utilizado, conjugado, microscópio).

A maneira como isso afeta a interpretação dos resultados na rotina clínica pode ser avaliada por um levantamento realizado em um grande laboratório clínico na cidade de São Paulo(19). Entre 30.728 amostras encaminhadas para triagem de auto-anticorpos em ANA-HEp-2, no período de janeiro de 2001 a janeiro de 2003, 13.641 (44%) apresentavam reatividade nuclear. Entre esses 44% os padrões mais prevalentes foram pontilhado fino (PF) e pontilhado fino denso (PFd) e os títulos observados foram predominantemente baixos para o padrão nuclear PF contrariamente ao padrão nuclear PFd que apresentou maior freqüência em títulos mais altos e também representou cerca de 1/3 das amostras com positividade nuclear (Quadro 9).


Figura 4 – Aspecto morfológico característicos de diversos padrões de fluorescências identificados em células HEp-2.

Quadro 4 – Algoritmos de classificação de padrões de fluorescência nuclear, segundo o Consenso Brasileiro de ANA-HEp-2



Quadro 5 – Algoritmos de classificação de padrões de fluorescência nucleolar, segundo o Consenso Brasileiro de ANA-HEp-2



Quadro 6 – Algoritmos de classificação de padrões de fluorescência citoplasmática, segundo o Consenso Brasileiro de ANA-HEp-2



Quadro 7 – Algoritmos de classificação de padrões de fluorescência do aparelho mitótico, segundo o Consenso Brasileiro de ANA-HEp-2.






Dos 30% que apresentaram o padrão PFd apenas 18,5% apresentavam algum tipo de doença reumática auto-imune e a maioria não apresentava qualquer indício de auto-imunidade (Quadro 10). Havia também informação pregressa sobre dados sorológicos de 40 desses casos por um período de até quatro anos e observou-se que 37 (93%) mantiveram títulos altos de anticorpos para este auto-antígeno. Portanto, trata-se de uma resposta sorológica duradoura. A caracterização do antígeno responsável pela expressão do padrão PFd evidenciou forte associação com a especificidade imunológica anti-LEDGF/p75(19).

Quadro 9 – Levantamento realizado no período de janeiro de 2001 a janeiro de 2003, de 30.728 amostras, 13.641 apresentavam reatividade com o núcleo celular e destas 30% apresentaram o padrão PFd (Adaptado de Dellavance et al., 2005).



Nossos achados são corroborados por Watanabe et al. (2004)(20), que estudaram 597 trabalhadores hígidos de um hospital urbano no Japão (142 homens e 455 mulheres) para verificar a freqüência de anti-LEDGF/p75, responsável pelo padrão PFd na IFI. Para isso utilizaram ANA-HEp2, WB e método imunoenzimático com LEDGF/p75 recombinante. Pela técnica de ANA-HEp2 foi verificado que 20% dos indivíduos apresentaram reatividade nuclear e destes, 64 apresentaram o padrão nuclear PFd representando 11% do grupo estudado e 64% dos ANA-HEp2 positivos.


Figura 5 – Distribuição do padrão de fluorescência no teste de anticorpos antinúcleo em células HEp-2 (ANA-IFI) em 389 pacientes, de acordo com a presença e ausência de evidência de auto-imunidade.

Um outro levantamento extremamente valioso foi realizado por Leser et al.(21) que demonstrou a importância da associação do padrão de IFI com estado clínico. O trabalho foi baseado em uma amostragem aleatória de 394 pacientes com ANA-HEp-2 positivo recrutados da rotina de um laboratório clínico e com informações clínicas recrutadas de forma sistemática junto aos médicos. De acordo com um protocolo preestabelecido, os pacientes foram classificados em dois grupos: um de indivíduos com indícios de enfermidades auto-imunes e outro com indivíduos sem qualquer evidência de auto-imunidade. Como pode ser observado na Figura 5, os padrões nuclear pontilhado grosso (PG) e homogêneo (Ho) associaram-se quase exclusivamente a pacientes com enfermidades auto-imunes. Em contrapartida, os padrões nuclear pontilhado fino denso (PFd) e nuclear pontilhado grosso reticulado (PR) associaram-se predominantemente a indivíduos sem qualquer evidência de auto-imunidade. Outros padrões de fluorescência apresentaram graus de associação intermediária. Ao se conjugarem as informações de padrão de fluorescência e título, observou-se, para alguns padrões, que a associação com ausência de auto-imunidade foi real apenas em títulos baixos. Este foi o caso do padrão nuclear pontilhado fino (PF) e do nuclear pontilhado grosso reticulado (PR). O mesmo não foi absolutamente verdadeiro para o PFd, que apresentou alta taxa de associação com ausência de auto-imunidade em títulos baixos, médios e altos, mostrando plena concordância com o estudo realizado por Dellavance et al.(19) com este padrão de ANA-HEp-2.

Sem dúvida, dados como estes poderiam desencorajar o uso do teste ANA-HEp-2 na prática clínica. Entretanto, este é um teste extremamente valioso quando bem indicado e apropriadamente interpretado. Portanto, cabe identificar critérios para a correta valorização deste exame.

Diretrizes para interpretação do teste ANA-HEp-2

Algumas considerações são importantes para uma interpretação adequada do teste do ANA-IFI. Em primeiro lugar, este exame deve ser solicitado apenas quando houver suspeita convincente de doença auto-imune. Sua solicitação frente a um paciente com queixas vagas freqüentemente trará mais confusão ao raciocínio clínico, visto que um resultado positivo não implica necessariamente auto-imunidade.

Um segundo ponto a ser considerado é o título do ANA-HEp-2 , embora seu valor seja relativo. Em geral, os pacientes auto-imunes tendem a apresentar títulos moderados (1/160 e 1/320) e elevados (³ 1/640) enquanto os indivíduos sadios com ANA-HEp-2 positivo tendem a apresentar baixos títulos (1/80). Entretanto, é importante ter em mente que exceções de ambos os lados não são infreqüentes.

Um outro ponto fundamental para a correta valorização do teste de ANA-HEp-2 é o padrão de fluorescência que, como mencionado anteriormente, fornece uma indicação da identidade do(s) auto-anticorpo(s) em questão. É sabido que auto-anticorpos contra alguns antígenos têm associação bastante estrita a determinadas doenças auto-imunes ou ao estado de auto-imunidade em si enquanto outros ocorrem indiscriminadamente em indivíduos auto-imunes e não auto-imunes. Desta forma, determinados padrões de fluorescência são mais específicos de doença auto-imune que outros. Estudos de biologia molecular e celular permitiram estabelecer a associação de diversos padrões de fluorescência, domínios celulares e seus respectivos auto-antígenos. Assim, o padrão nuclear pontilhado grosso, por exemplo, representa exatamente o mapa de distribuição das proteínas envolvidas no processo de processamento (splicing) do RNA mensageiro, também conhecido como “spliceossome”. Ocorre que as principais proteínas do “spliceossome” são exatamente aquelas reconhecidas pelos anticorpos anti-Sm (proteínas B, B’, D, D’, E, F e G) e anti-snRNP (proteínas A, C e 70kDa). Desta forma, o encontro do padrão nuclear pontilhado grosso está fortemente associado aos anticorpos anti-Sm e/ou anti-snRNP. Da mesma forma, o padrão nuclear homogêneo representa a distribuição da cromatina no núcleo e, portanto, tende a ser ocasionado por anticorpos contra o DNA nativo, nucleossomo ou histonas.

Alguns outros padrões observados no teste ANA-IFI, também associados especificamente a determinados domínios nucleares e seus respectivos antígenos, não são considerados específicos de uma dada doença. Isto foi bem demonstrado por Goto et al.(22) quando trabalhou com um grupo formado por 1.306 japoneses hígidos trabalhadores em um hospital. Nesta população, 3,7% dos indivíduos apresentavam anticorpos anti-p80 coilina e estes não apresentavam qualquer evidência de auto-imunidade. Um outro exemplo está no padrão citoplasmático de pontos isolados estudado por Laurino et al.(23) presente em indivíduos sem evidência de auto-imunidade, mas também em indivíduos com acometimento de doenças auto-imunes sistêmicas e órgão-específicas. Desta forma podemos perceber que os antígenos reconhecidos por anticorpos presente no soro de alguns indivíduos não são estritamente associados a uma condição auto-imune ou mesmo à auto-imunidade em geral.
Finalmente, alguns padrões podem estar associados a doenças auto-imunes quando em títulos altos, mas têm pouca relevância clínica quando em títulos baixos. Este é o caso do padrão nucleolar, do padrão citoplasmático polar (Aparelho de Golgi), do padrão nuclear pontilhado grosso reticulado, do padrão nuclear pontilhado fino e do padrão centromérico. Em particular, o padrão nucleolar tem uma interessante associação com esclerose sistêmica quando em títulos bem altos (acima de 1/1280).

Ainda do ponto de vista laboratorial, a interpretação de um resultado positivo do teste ANA-HEp-2 pode ser auxiliada pela detecção de auto-anticorpos específicos associados ou não ao padrão de ANA-HEp-2 encontrado. Por exemplo, a demonstração de anticorpos anti-DNA nativo é fortemente indicativa de lúpus eritematoso sistêmico. Anticorpos anti-Jo-1 e anti-Scl-70 são marcadores de polimiosite e esclerose sistêmica, respectivamente. Portanto, o encontro desses ou de outros marcadores específicos contribui para a definição mais acurada da valorização de um resultado positivo de ANA-HEp-2. Em contrapartida, a ausência desses marcadores não exclui, mas tira a força do achado de ANA-HEp-2, especialmente se este for de características pouco específicas (vide acima) e não houver contrapartida clínica ou laboratorial de doença auto-imune sistêmica.
Diante de um resultado positivo de FAN, é importante verificar se existe evidência clínica ou laboratorial de doença auto-imune sistêmica. Além do exame clínico apurado é importante verificar possíveis alterações no hemograma, urina I, proteína C reativa e velocidade de hemossedimentação. Sintomas vagos, como artralgia e astenia, com exames laboratoriais gerais normais, não são suficientes para oferecer subsídio para uma achado laboratorial de ANA-HEp-2 em título baixo e com padrão de fluorescência pouco específico. Por outro lado, é sabido que algumas vezes as enfermidades auto-imunes manifestam-se inicialmente por sintomas vagos e pouco específicos. Nesse sentido, é bom lembrar que os auto-anticorpos podem preceder por meses ou anos a eclosão clínica de uma doença auto-imune. É importante também considerar a possibilidade de um estímulo imunológico transitório como causa do ANA-HEp-2 positivo. Isto é particularmente verdadeiro no contexto de infecções virais, como Epstein-Barr, citomegalovírus e parvovírus.
Em suma, são várias as possíveis interpretações de um resultado positivo do teste ANA-HEp-2, incluindo uma evidente associação com doença auto-imune, um traço incompleto de diátese auto-imune familiar, um achado precoce de doença auto-imune, um distúrbio imunológico transitório (infecção, droga, câncer), e uma manifestação mínima de uma doença auto-imune espectral. A análise criteriosa de todo o contexto clínico é fundamental para a correta valorização deste achado. Muitas vezes, impõe-se uma monitoração prospectiva por algum tempo para se detectar uma possível evolução para auto-imunidade clínica. Em todos os cenários, é fundamental tranqüilizar o paciente, muitas vezes ansioso pelo estigma de um resultado positivo do teste ANA-HEp-2.

Conclusão

A solicitação do exame ANA-HEp-2 requer obrigatoriamente um conhecimento apurado das peculiaridades deste ensaio. Considerando os achados positivos em indivíduos hígidos ou sem evidência de auto-imunidade, que variam de 10% a 15% nas diferentes casuísticas, fica evidente a necessidade de solicitações respaldadas em elementos clínicos ou laboratoriais sugestivos de auto-imunidade. A solicitação indiscriminada de ANA-IFI tem ocasionado situações conflitantes quando resultados positivos são confrontados com dados clínicos inconsistentes. A adequada interpretação dos padrões de IFI exerce um papel primordial na valorização dos resultados encontrados. Características intrínsecas do teste ANA-HEp2 podem ser úteis nesse sentido. O título do ANA-HEp2 é um parâmetro de valor relativo enquanto o padrão de fluorescência pode ter impacto mais decisivo. Isto é especialmente verdadeiro diante de alguns padrões como os nucleares pontilhado grosso e nuclear homogêneo, mais freqüentemente associados a estados auto-imunes sistêmicos, e aos nucleares pontilhado fino denso e pontilhado grosso reticulado, presentes preferencialmente em indivíduos hígidos e em pacientes sem evidências de auto-imunidade. Entre esses, salienta-se o padrão nuclear pontilhado fino denso, por seu reconhecimento relativamente recente e por representar o padrão observado mais freqüentemente e em maiores títulos em indivíduos não auto-imunes.




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