Numeração de páginas na revista impressa: 188 à 191
O universo foi criado apenas uma vez, enquanto os mundos interpessoais são criados, no aqui, todos os dias, na mente de cada novo bebê” Daniel Stern
A cada fim de século, o homem acaba por voltar suas pesquisas para dentro de si mesmo e para suas origens. Foi assim com a criação, no final do século XIX, dos raios X, que mostra o interior do corpo e, de outra ordem, o nascimento da Psicanálise, que desvela o inconsciente.
Neste momento histórico, transição do milênio, assistimos a um intenso mergulho no olhar sobre a fase de bebê. Trabalhos de: Druon(1), Haag(2), Golse(3), Piontelli(4), dentre outros cientistas, nas últimas décadas, fazem-nos repensar todas as certezas, antes sólidas e calcadas em estudos hegemônicos sobre o que esperar e como atender às demandas da primeira infância.
Em diferentes áreas de saber, estudiosos constatam que a complexidade humana não comporta o aprisionamento em uma lógica linear, reducionista, sempre revelando inúmeras faces, anteriormente ocultas e anunciando o caos e a crise para o nascimento de novas ordenações. Quando evocamos a complexidade não nos podemos furtar de nomear alguns de seus estudiosos, como Morin(5), Prigogine e Stengers(6), que propõem uma transformação em nossa forma de conceber o humano e suas vicissitudes e, consecutivamente, na forma de fazer ciência, de modo mais ético e inserido no contexto sócio-histórico.
A concepção complexa do homem é um desafio. Eterna construção, sempre inacabada, que permite captar um pouco mais dos segredos que nos envolvem. Compreender, sem que para isso tenhamos que simplificar, ou reduzir nosso foco de estudo, mas na mão inversa da corrente positivista, aceitar o incerto e buscar um olhar poliocular, onde biológico, psíquico, motor, cognitivo, econômico, ecológico e demais partes do todo individual e universal possam ser recebidos em suas manifestações e influências.
Quais conseqüências traz essa revisão da fase de bebê, que nos denuncia a existência de um psiquismo, mesmo no útero, e nos mostra a construção delicada de um envelope psíquico, um Eu Pele, como nos diz Anzieu(7)? Ou, os desdobramentos dos Sensos de Eu, preconizados por Stern(8), onde a subjetividade é vivida nas experiências, que se integram pouco a pouco, amadurecendo por toda a vida? Indubitavelmente, tudo isso nos faz refletir sobre as bases de nossa personalidade e nossa maneira de decifrar a origem, prevenção e tratamento das distorções na espiral evolutiva da infância e mesmo no adulto.
Como nos afirma Stern(8), o saber sobre o “bebê construído”, que resgatamos na psicanálise em conjunto com o “bebê observado” pela psicologia do desenvolvimento, presenteia-nos com novos insights sobre nossos próprios conflitos e possibilidades. E isso nos leva, necessariamente, às formas de educar, desenvolver potencialidades, prevenir bloqueios e distúrbios.
As relações psicomotoras do bebê constroem suas possibilidades de interação social, sua auto-imagem, sua organização psicofisiológica, suas linguagens verbal e não verbal, dentre outros fatores. São estas relações, ou seja, a integralidade de seus encontros e desencontros, seus diálogos tônicos com seus familiares, espaços, objetos e outras pessoas estranhas ao núcleo inicial, que irão constituir o arcabouço do qual irá erigir-se toda a evolução do sujeito. Quando falamos em relações, buscamos focar os registros que deixamos não só de forma abstrata em um psiquismo que é impalpável, mas as marcas definitivas que imprimimos em seu corpo.
Não são desconhecidos os estudos de Foucault(9) sobre o “Corpo Político”, onde nos demonstra a necessidade de domesticar os corpos para conquistar o poder, e o quanto reproduzimos esse modelo, em nossas escolas, presídios, hospitais e mesmo em nossas casas.
É esse corpo, pergaminho de toda a história do sujeito, que permitirá a existência das relações psicomotoras, e é desse corpo que excede o biológico, excede o psíquico, excede o social, que falamos em Psicomotricidade. Essa palavra, que poucos conhecem o significado exato, evoca uma prática e um saber, que se destina ao estudo do homem em movimento, a partir de suas relações com seu próprio corpo, com o espaço e com os outros, compreendendo que é necessária uma unidade funcional, somatopsíquica, para que o indivíduo possa manter sua homeostase, seu equilíbrio na saúde.
Um dos diferenciais dessa prática é sua intervenção através do jogo espontâneo, um brincar, no qual o sujeito tem o direito de tudo ser e fazer, exceto invadir o direito do próximo ou destruir a si mesmo e ao espaço. E da possibilidade de interagir nesses jogos, surge a elaboração das situações de conflito e a transformação nas dificuldades, sejam de ordem cognitiva, motora, afetiva, existencial, dentre outras.
Abordaremos, essencialmente, o viés profilático da prática psicomotora, contudo, sempre no sentido da promoção de saúde. Buscamos problematizar sobre os caminhos que podemos tomar no sentido de facilitar a evolução harmônica da criança, em sua espiral de desenvolvimento.
Utilizaremos um contraste. Para falar de saúde, vamos focalizar a doença.
O bebê hospitalizado
No olhar para um desfecho possível – pensamos a doença somática como um extremado pedido de ajuda, a perda da unidade psicomotora – visamos desconstruir os gestos e sintomas para perceber os sinais que manifestam os discursos de crianças muito pequenas em tamanho e peso, contudo, absoluta e grandiosamente complexas em suas subjetividades.
Nossa pesquisa para a dissertação de mestrado em Ciências: Saúde da Criança, do Instituto Fernandes Figueira (IFF) – Fiocruz-MS, teve como campo as enfermarias pediátricas do mesmo hospital. O estudo das Relações Psicomotoras do Bebê Hospitalizado(11) foi realizado, no período de março a junho de 1997, com bebês sem patologia neurológica ou genética de base, internados no IFF, hospital de referência, com atividades de ensino, pesquisa e assistência, que recebe uma clientela de crianças crônica e gravemente adoecidas.
Propusemos a compreensão das relações psicomotoras do bebê internado com o espaço hospitalar, familiares, staff e o processo de adoecer, através de uma leitura dos diálogos tônicos estabelecidos em suas diferentes comunicações e, também, a ampliação das bases estratégicas de como facilitá-las, visando subsidiar os profissionais que atendem nos hospitais a abarcar um pouco mais das necessidades imperiosas do lactente, em suas interações com o mundo.
Nosso movimento era de asseguramento de um lugar de sujeitos para o bebê e sua família, modificando a visão “mutiladora”, que os reduz a objetos de cuidados, e dando lugar a uma concepção integral e multifacetada do fenômeno saúde/doença.
Trata-se da prática do “envelopamento hospitalar” que propõem Cresti & Lapi(11), tarefa da instituição no acolhimento da família que chega, valorizando os gestos e manifestações do bebê como um discurso e revitalizando a figura do pai, além da mãe, como co-participante no equilíbrio somatopsíquico do bebê internado. Essa forma de atenção/escuta se assemelha a um grande invólucro, onde o bebê e sua família podem alojar-se, protegidos das terríveis ameaças de despedaçamento que decorrem das freqüentes intervenções dolorosas, a austeridade do ambiente institucional e a aridez dos contatos – situações de descontinuidade geradoras dos transtornos psicomotores que têm como ápice a apatia psicomotora e, muitas vezes, dificuldades de retorno ao lar ou mesmo uma psicopatologia, no futuro.
Assim, com base no pensamento complexo em Morin(5) e na abordagem da pesquisa qualitativa, preconizada por Minayo, encontramos uma estratégia para trabalhar o resgate da leitura fundamental para a compreensão das atitudes diante do bebê enfermo, valorizando a interação entre os aspectos físicos, psicológicos, sociais e ambientais em suas manifestações simbólicas.
Utilizamos a câmera de vídeo, a partir do conceito de “câmera participante” de Rouch (apud D’Avila Neto)(14), que a integra à observação participante, no sentido de captar a linguagem do corpo, uma vez que o corpo é memória viva. No total de 12 bebês observados, aprofundamos a nossa análise nos três casos que permaneceram internados num período superior a 30 dias, o que caracterizou nosso primeiro plano de análise. As nove crianças restantes compuseram o segundo plano de análise. Os dados recolhidos através das imagens, entrevistas e intervenções, no cruzamento das informações dos dois planos, desvelaram, à luz das teorias que embasam nossa prática: Psicomotricidade de abordagem Relacional(15) e Aucouturier(16), Pensamento Complexo, Psicanálise e Semiótica; núcleos de sentido que demonstram a inadequação dos espaços oferecidos ao bebê e seu acompanhante, a forte influência da dor na desorganização psicomotora do infante e os obstáculos ao contato apresentados pelo staff e familiares diante de situações de estresse acentuado, que impedem a visão do bebê como sujeito no processo de tratamento.
Por outro lado, o material analisado comprova que o envelope hospitalar é possível. Com a proposta psicoprofilática em ação, através das estratégias psicomotoras do brincar e do tocar(17) – instrumentos transdisciplinares que favorecem a revalorização da singularidade – os bebês, apesar de seus quadros clínicos, assim como os familiares e equipe, readquiriam ou passavam a exercer sua subjetividade, resgatando prazer nas relações e retribuindo com gestos e sorrisos aos seus interlocutores.
A partir dessa intervenção, funda-se um lugar onde a espontaneidade do gesto pode ressurgir, resgatando as trocas e as possibilidades de transformação tônico-emocional recíproca(18), tão necessárias à espiral do desenvolvimento. Assim, constatamos que houve benefícios da Profilaxia Psicomotora Hospitalar na tarefa do envelope hospitalar e esperamos que este trabalho possa contribuir para a reflexão e transformação, com brevidade, das condutas clínicas com o bebê internado, adaptando-as aos seus ritmos e seu equilíbrio psicossomático em prol de sua constituição como sujeito e cidadão.
Implantamos, a partir de agosto de 1998, em parceria com a Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, o Projeto Brincar é Viver, que reproduz a experiência do campo de pesquisa, nas enfermarias pediátricas do Hospital Universitário Pedro Ernesto – RJ, com bebês, crianças e adolescentes, incluindo seus familiares e abrindo um campo de possibilidades para o resgate das experiências psicomotoras, e a homeostase familiar(19), alteradas pela solução de continuidade provocada pela doença e hospitalização.
Em 1999, a partir do acordo interinstitucional UERJ & INCA, implantamos esta filosofia na enfermaria pediátrica do Instituto Nacional do Câncer (INCA) – RJ e, em 2001, iniciamos nosso trabalho no Hemorio.
Tais iniciativas reforçaram em gênero, número e grau nossas constatações iniciais e nos convidaram a desejar a disseminação desta estratégia, assim como de suas teorias, não só demonstrando a necessidade da intervenção do profissional em psicomotricidade, mas, acima de tudo, da possibilidade de transformação na qualidade de nossos serviços de saúde voltados à primeira infância.
A partir deste desejo fundamos, em 2001, a ONG Sociedade Brincar é Viver que tem a meta de contribuir para a construção de um olhar/escuta transdisciplinar, em que a pessoa hospitalizada seja vista como “singularidade complexa” em seu processo de adoecimento e cura.
Em decorrência destas sínteses, voltamos a falar dos destinos do bebê, em geral, em suas possibilidades de crescer e desenvolver-se sem grandes obstáculos. Nossa responsabilidade consiste em aceitar o desafio contínuo de compreender sua subjetividade, escutando os discursos, que de forma verbal ou não, são manifestos, apontando caminhos para reordenar o que se tornou caótico, sem que se perca de vista a unidade que sustenta nosso equilíbrio somatopsíquico.
A saúde da criança e seu desenvolvimento estão condicionados às nossas percepções, à nossa capacidade de maleabilizar nosso pensamento e também nossos atos, valorizando mais as informações que nos são apresentadas nos diálogos infraverbais, nos quais as subjetividades se encontram para uma possibilidade de tornar comum, comunicar um desejo, uma necessidade, que será imperiosa para agora ou para o futuro.
Pensar em meios e modos de auxiliar o árduo percurso do crescimento é muito menos fácil que se imaginou, a partir das descobertas da psicologia moderna. Na era pós-moderna tudo se torna questionável, incerto, inconstante. Por enquanto, podemos dizer que é necessário assumir melhor nosso compromisso, entendendo ser imprescindível para o surgimento de um futuro cidadão, inserido e feliz, um acompanhamento do adulto, acompanhamento atento e não sufocante, em que as descobertas possam ser realizadas, com esforço próprio, onde as mensagens enviadas aos adultos possam ser decodificadas e respeitadas como a manifestação de desejos e necessidades inerentes ao processo de se tornar um ser individual e, simultaneamente, social.
O brincar e o tocar continuam sendo a linguagem espontânea das crianças e, cada vez mais, temos de nos render a ela como forma de compreender o que se passa em sua vida interior. E isso nos remete à questão: O que é uma criança desenvolvida? Aucouturier nos responde:
– “Uma criança desenvolvida (…) é uma criança de acolhida e de abertura em busca de demandas junto às pessoas de seu meio. É uma criança que sente prazer em dar e receber, em descobrir e conhecer: é uma criança feliz de viver que afirma seus desejos sem medo, dúvidas, nem culpa. (…) Favorecer um desenvolvimento harmonioso da criança é, antes de tudo, dar-lhe a possibilidade de existir, de tornar-se uma pessoa única, é oferecer-lhe, então, condições as mais favoráveis para comunicar-se, expressar-se, criar e pensar”.
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